4) Universidade como modalidade de associação pública, integrante da Administração autónoma
Parecer
- Introdução
Este parecer visa aferir o enquadramento das universidades no âmbito da Administração Autónoma, enquanto associações públicas.
As universidades têm gerado desentendimento na doutrina administrativa portuguesa, quanto à sua relação administrativa com o Estado. São muitas as dúvidas relativas à sua caracterização, nomeadamente, quanto à sua natureza, finalidade e hierarquia.
- Enquadramento na figura de associação pública
De acordo com Mário Aroso e Almeida, as associações públicas são «(...) pessoas coletivas de direito público de base associativa, que podem resultar da associação de pessoas coletivas públicas ou ser criadas para assegurar a prossecução de interesses públicos que coincidem com os interesses de determinadas categorias de pessoas» [1].
Para que uma associação pública seja concretizada, para além da coletividade de membros, é necessário que se vejam cumpridos determinados elementos essenciais. Tais como, a criação ou reconhecimento por ato público, a estrutura associativa, o autogoverno, o desempenho de tarefas publicadas confiadas aos próprios interessado e a autodeterminação [2]. Como sugere Isa António.
As associações públicas integram-se no sistema de organização administrativa, Administração Autónoma. A Administração Autónoma «não se encontra submetida nem a poder de direção, nem a poder de superintendência, mas só a poder de tutela por parte do Estado-Administração» [3] e, assim, havendo «ausência de uma relação de subordinação relativamente ao Governo, enquanto órgão superior da Administração Pública» [4]. Acresce mencionar que «prossegue interesses públicos próprios das pessoas que a constituem e por isso se dirige a si mesma, definindo com independência e orientação das suas atividades, sem sujeição a hierarquia ou a superintendência do Governo» [5].
- Integração na Administração Autónoma
No âmbito da Administração Autónoma, existem entidades que, por sua vez, prosseguem fins próprios. Como inicialmente apontamos, as universidades fazem parte da Administração Autónoma, sendo esta a posição tomada por maioria da doutrina.
Esta modalidade de Administração não está sujeita a poderes de direção, que consiste «na faculdade de um superior dar ordens e instruções, em matéria de serviço, ao subalterno»[6], nem de superintendência, que corresponde ao poder de emanar diretrizes, estabelecer metas, tendo estas de ser observadas, guiando ao estabelecimento destas. Por força da Constituição, mormente o seu artigo 76.º/2 CRP, as universidades têm autonomia administrativa e, portanto, não se encontram sujeitas a direção ou superintendência.
Está antes sujeita a poderes de tutela de mérito, na avaliação da qualidade de ensino, consagrado no artigo 76.º/2 CRP articulado com o artigo 147.º/2 Lei n.º 62/2007. Igualmente está sujeita a tutela de legalidade, no sentido de observação do cumprimento da lei e defesa do interesse público, nos termos do artigo 150.º/1 Lei n.º 62/2007.
Inexiste qualquer hierarquia administrativa entre a Ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e as universidades, dado que esta não exerce poderes de direção, não podendo ditar regras que por estas entidades devem ser cumpridas.
A Magna Carta das Universidades Europeias, assinada em Bolonha, a 18 de setembro de 1988, que demonstra a importância dos valores da tradição universitária, realçava a importância da autonomia institucional.
Desenvolve-se uma discussão doutrinária em volta deste tema.
O Professor Freitas do Amaral toma a posição de que as universidades fazem parte da Administração Indireta, que o mesmo define como «atividade administrativa do Estado, realizada, para a prossecução dos fins deste, por entidades públicas dotadas de personalidade jurídica própria e de autonomia administrativa ou administrativa e financeira.» [7]
Em contraposição, o Professor Vasco Pereira da Silva, tal como a maioria doutrinária, compreende as universidades no âmbito da Administração Autónoma. Neste sentido, cabe-nos classificar a universidade como uma entidade distinta do Estado, que se auto-organiza e prossegue fins próprios, pelo que se torna claro a inserção desta na Administração Autónoma e não na Administração Indireta. Ainda o professor Marcelo Rebelo de Sousa de forma coerente com a legislação portuguesa, enquadra as universidades no âmbito da Administração Autónoma.
- Discussão da natureza jurídica
Relativamente à sua natureza associativa, é uma questão que já levanta mais polémica e desacordo. Enquanto o Professor Vasco Pereira da Silva, que as enquadra na administração autónoma, defende que a sua base é a relação entre professor e aluno, de ensinar e aprender, sendo que estes não se encontram na mesma posição e por isso não há associativismo, Marcelo Rebelo de Sousa e Luís Pereira Coutinho compreendem existir um substrato associativo nas universidades. Contudo, o atual Presidente da República não as considera associações públicas já que os interesses próprios prosseguidos não se sobrepõem aos interesses transferidos pelo Estado.
Não há dúvida que a universidade é uma organização permanente de meios humanos e financeiros criada e mantida pelo Estado, sendo os seus estatutos aprovados por Decreto-lei, e são mantidas pelo Estado por não terem independência financeira, apesar de terem autonomia financeira. Correspondendo às características enumeradas acima como elementos essenciais de uma associação pública.
O Estado está inevitavelmente envolvido pelo facto de estar constitucionalmente previsto que este tem de assegurar a criação e a investigação científicas, incentivadas e apoiadas pelo Estado, como estabelece o art.º 73/4 CRP e também deve criar uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades da população, previsto no art.º 75/1 CRP, e finalmente no art.º 9 alínea f) CRP assegurar o ensino e valorização permanente.
Contudo, esta necessidade de o Estado assegurar estes princípios e direitos não significa que estes sejam exercidos estadualmente, por este mesmo. Como se verificou, a administração central não tem qualquer poder de direção sobre as universidades, apenas de tutela de mérito e legalidade. Segundo o professor Luís Pereira Coutinho [8] estes fins são prosseguidos não pela comunidade estadual, mas sim por uma comunidade de interesses intraestaduais.
Este defende que as atividades tendentes à descoberta, transmissão, tratamento e aquisição de conhecimentos científicos são, normalmente, abordadas individualmente, porém, o seu desenvolvimento irá envolver atividades coletivas como a sua organização ou planeamento. Diz o mesmo autor, portanto, que quem deve exercer essas funções de organização e programação, o chamado governo universitário, tem de ser associativamente constituído. Há uma formação de titulares desse serviço de uma associação pública que seja capaz de prosseguir interesses de natureza científica e pedagógica, concretizando a liberdade académica.
«Mas é a dimensão organizatória das liberdades de criação científica, de ensinar e de aprender que exige que o interesse relevante do seu exercício em comum no quadro universitário seja encarado como interesse próprio a ser prosseguido pelos órgãos associativos da mesma. É exigido que tais interesses sejam prosseguidos independentemente de poderes condicionantes de intervenção intra-administrativa.» [8]
Assim, propõe-se uma interpretação ampla do conceito de associação pública previsto constitucionalmente a fim de englobar mais um tipo de associação, proposta pelo mesmo professor, associação pública funcional de direitos fundamentais. Isto, pois, estão tanto os alunos como os professores a seguirem o mesmo fim, afinal, a exercerem os seus direitos fundamentais tanto de ensinar como de aprender. Apenas desta forma podem as universidades serem vistas como associações públicas, no exercício conjunto de «direitos especiais de administração».
- Vantagens
Apresentamos agora algumas vantagens quanto ao assunto em questão.
Por estar integrada na Adminsitração Autónoma, as universidades, embora sob forma de associação pública, sujeitam-se ao princípio da unidade de ação, consagrado no artigo 267.º/2 CRP que se deve entender «como um princípio geral de direito administrativo que visa modelar, configurar e ordenar as regras de funcionamento e de ação de toda a Administração Pública» [9]. Nestes termos, a ação das universidades converge com a da Administração Pública.
Uma clara e distinta característica positiva no facto de as universidades serem associações públicas é, como mencionado, a manutenção e preservação do direito fundamental de ensinar e aprender, conjugado com a concretização da liberdade académica.
Constitui, pois, uma vantagem o controlo de mérito ser realizado pelo Estado, embora as universidades não estejam sujeitas a superintendência, dado que se mantém a razoabilidade da qualidade do ensino.
- Inconvenientes
Embora não fosse integrado nos fins do Estado, é premente a continuidade do financiamento estadual de forma a assegurar a incumbência do Estado, nos termos do artigo 81.º alínea l) CRP, cujo é reforçado pelo artigo 73.º/4 CRP, no sentido do desenvolvimento tecnológico e da investigação científica.
«O incentivo e apoio do Estado à investigação não é uma tarefa valorativamente neutra. Desde logo, ela deve assegurar a liberdade e autonomia quer dos investigadores, reconhecendo um direito de liberdade para as pessoas que se dedicam à investigação, quer das instituições de investigação enquanto tais, reconhecendo-lhes uma garantia institucional de liberdade. Esta liberdade e garantia institucional são reforçadas pela autonomia dos estabelecimentos de investigação, respeitando as suas dimensões de autoadministração»[10].
Daqui ressalta a importância da autonomia dos estabelecimentos de investigação e do seu autogoverno, garantida pela sua inclusão na Administração Autónoma do Estado, em termos acima referidos.
«Ao lado da liberdade e autonomia, o apoio e estímulo do Estado à investigação e inovação tecnologia visa garantir o reforço da competitividade. A inserção deste objetivo (adotado pela LC nº 1/97) obedece a razões diferentes da garantia da liberdade e autonomia. Aqui o que está em jogo é o incremento de bases científicas e tecnológicas de Portugal (e no contexto europeu, da União Europeia), de forma a desenvolver a competitividade internacional das suas unidades de investigação, e, com base nelas, a competitividade internacional da indústria ou outras atividades produtivas. A investigação e desenvolvimento tecnológico em termos competitivos são, deste modo, as traves-mestras da estruturação e aprofundamento da sociedade do conhecimento, e de inovação, contribuindo, também, para a obtenção de coesão social.» [10]
Na mesma medida do que acima foi mencionado sobre o controlo de mérito, este poderá acarretar consequências negativas se for realizado de forma parcial e não isenta. Uma dessas consequências poderá ser a indesejável politização das universidades e a proliferação de um ensino de má qualidade.
Outro contributo para essa possível proliferação será uma fiscalização insuficiente do Estado, cuja competência lhe é atribuída pelo artigo 148.º da Lei-Quadro das Universidades, Lei n.º 62/2007.
- Conclusão
Nas medidas do que foi exposto e tendo em conta todas as opções possíveis de gestão e administração das universidades públicas em Portugal, concluímos que não há melhor forma de organização que as associações públicas de administração autónoma.
1- ALMEIDA, Mário Aroso, "Teoria Geral do Direito Administrativo", Almedina, 8.ª edição, 2021, p. 79.
2- ANTÓNIO, Isa, "Manual Teórico-Prático de Direito Administrativo", Almedina, 3.ª edição, 2021, pp. 279 a 280.
3- SOUSA, Marcelo Rebelo, "Lições de Direito Administrativo", Lex, 1999, p. 307.
4- AMARAL, Diogo Freitas, "Curso de Direito Administrativo", Vol. I, Almedina, 4.ª Edição, 2015, p. 360.
5- MOREIRA, Vital, "Administração autónoma e associações públicas", Coimbra, 1997, p. 78.
6- AMARAL, Diogo Freitas, "Curso de Direito Administrativo", Vol. I, Almedina, 4.ª Edição, 2015, p. 674.
7- AMARAL, Diogo Freitas, "Curso de Direito Administrativo", Vol. I, Almedina, 4.ª Edição, 2015, p. 299.
8- COUTINHO, Pereira Luís, Problemas relativos à natureza jurídica das Universidades e Faculdades, o_problema_da_natureza_das_universidades.pdf (icjp.pt).
9- FERREIRA, Maria Celeste, "Contributo para o Conceito e Natureza das Entidades Administrativas Independentes", 2014, p. 42
10- CANOTILHO, Gomes, MOREIRA, Vital, "Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, Vol. I, 4ª edição, 2007, p. 893.
Ana Catarina Freitas, Beatriz Abreu, Carlos Guerra, Rita Matos