A autotutela executiva
Beatriz Napoleão Bastos, n.º 66313
De entre as várias classificações do acto administrativo, a doutrina distingue o acto executório do acto não executório, quanto à susceptibilidade de execução administrativa.
Segundo o Professor Diogo Freitas do Amaral, os actos executórios são «os actos administrativos que sejam simultaneamente exequíveis e eficazes e cuja execução coerciva por via administrativa seja permitida ou não seja vedada por lei»[1]. Ou seja, são actos que impõem deveres ou encargos estruturalmente susceptíveis de execução coerciva dos particulares (exequíveis), produzem actualmente os efeitos do seu tipo legal ou outros que a lei lhes atribui (eficazes) e que são susceptíveis de execução coerciva administrativa permitida ou não vedada por lei.
A autotutela executiva consiste na faculdade de executar coactivamente a decisão administrativa sem necessidade de prévia decisão judicial.
O autor indica que a execução coerciva pressupõe que: i. exista um acto administrativo que obrigue um particular a uma determinada prestação; ii. o particular se recuse a cumprir voluntariamente esta obrigação; iii. a lei não se oponha à execução por via administrativa.
Esta formulação reflete a tradição portuguesa até à criação do novo Código do Procedimento Administrativo, em 2015. A autotutela executiva era uma regra geral do Direito Português. Veja-se o artigo 149.º, número 2, do antigo Código do Procedimento Administrativo (1991), na sua última versão:
«O cumprimento das obrigações e o respeito pelas limitações que derivam de um acto administrativo podem ser impostos coercivamente pela Administração sem recurso prévio aos tribunais, desde que a imposição seja feita pelas formas e nos termos previstos no presente Código ou admitidos por lei.»
O privilégio de execução prévia encontrava-se assim consagrado enquanto princípio geral. Ou seja, num litígio com um particular que não acatava o dever ou encargo imposto pela Administração Pública a bem, esta tinha o privilégio de o impor a mal, pela força, sendo que o inverso seria inadmissível. Actualmente, o artigo 176.º do Código vigente transforma-o numa norma residual. «Está dado um passo decisivo na edificação da Administração paritária, transitando o sistema administrativo português da "administração executiva" para a "administração judiciária"»[2]. Como indica o preâmbulo do diploma vigente,
«No que respeita ao regime da execução dos atos administrativos, a grande novidade é a consagração do princípio de que a execução coerciva dos atos administrativos só pode ser realizada pela Administração nos casos expressamente previstos na lei ou em situações de urgente necessidade pública, devidamente fundamentada (artigo 176.º). Trata-se de opção sustentada ao longo dos últimos 30 anos por uma parte muito significativa da doutrina. No essencial, o regime do n.º 2 do artigo 176.º procura refletir, entretanto, o regime tradicionalmente vigente no direito francês sobre a matéria, embora com salvaguarda do regime aplicável à execução coerciva de obrigações pecuniárias».
Actualmente, o instituto teria como pressupostos, como indica o Professor Paulo Otero, uma prévia decisão da administração que careça de execução; uma notificação para que o particular cumpra a obrigação num prazo razoável, podendo este impugnar a decisão ao junto de um tribunal; uma norma que permita expressamente a execução coerciva da decisão por parte da Administração, ou um título executivo atribuído por um tribunal.
Coloca-se, contudo, um problema. É que este regime não consta da lei. Veja-se o número 2 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, que aprova o novo Código do Procedimento Administrativo.
«O n.º 1 do artigo 176.º do Código aplica-se a partir da data da entrada em vigor do diploma que define os casos, as formas e os termos em que os atos administrativos podem ser impostos coercivamente pela Administração, a aprovar no prazo de 60 dias a contar da data da entrada em vigor do presente decreto-lei.»
Ora, se a aplicação deste regime depende da entrada em vigor de um diploma que regulasse a autotutela executiva, e o diploma, passados oito anos, nunca apareceu, então aplica-se, por força do artigo 6.º, de epígrafe norma transitória, o regime do antigo Código do Procedimento Administrativo. Um regime que mudaria o rumo da concepção da Administração, que exterminaria o privilégio de execução prévia, um instituto inconstitucional, nunca entrou em vigor porque nunca veio a ser regulado o mecanismo de intervenção judicial. E, neste sentido, continua a ser aplicado o antigo Código inconstitucional.
[1] Freitas do Amaral, Diogo, Curso de Direito Administrativo – Volume II. Coimbra: Edições Almedina, S.A, 2018
[2] Otero, Paulo, "Problemas constitucionais no novo Código do Procedimento Administrativo – uma introdução" in Armando Gomes, Carla; Neves, Ana Fernanda; Serrão, Tiago (ed.), Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo – Volume I. Lisboa: AAFDL, p. 34.
BIBLIOGRAFIA:
Otero, Paulo, Manual de Direito Administrativo I. Coimbra: Almedina, 2012
Freitas do Amaral, Diogo, Curso de Direito Administrativo – Volume II. Coimbra: Edições Almedina, S.A, 2018.
Armando Gomes, Carla; Neves, Ana Fernanda; Serrão, Tiago (ed.), Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo – Volume I. Lisboa: AAFDL, 2018.