A Delegação de Poderes: algumas considerações

16-12-2022

Embora reconheça que a delegação de poderes tenha um regime jurídico, consagrado no CPA, que nos permite esclarecer e responder a grande parte das dúvidas que anteriormente seriam suscitadas pela doutrina no âmbito da discussão da natureza jurídica da delegação de poderes, considero que seja fundamental analisar a evolução das principais teses apresentadas neste âmbito, tendo como objetivo perceber qual a tese que melhor se articula com o regime atual da delegação de poderes, ou seja, se existe alguma que considere superior às restantes.

A delegação de poderes, prevista nos artigos 44.º e s. do CPA, é o ato pelo qual um órgão da administração, normalmente competente para decidir em determinada matéria, permite, de acordo com a lei, que outro órgão ou agente pratiquem atos administrativos sobre a mesma matéria. Neste sentido, é necessário que se verifiquem três pressupostos cumulativos:

  • primeiramente, é necessária uma lei que preveja, expressamente, a faculdade de um órgão delegar poderes noutro: a chamada lei de habilitação, cuja necessidade vem prevista no artigo 111º, nº2 da CRP;
  • é necessária a existência de dois órgãos ou de um órgão e um agente, da mesma pessoa coletiva pública, ou de dois órgãos de pessoas coletivas distintas;
  • por fim, é necessária a prática do ato de delegação seja publicada no Diário da República, sob pena de ineficácia, nos termos do artigo 47º, nº2 do CPA, bem como possuir, no seu conteúdo, a especificação dos poderes delegados, segundo o nº1 do mesmo artigo, sob pena de invalidade.

Quanto à relação entre o delegante e o delegado: o delegante pode orientar o modo como os poderes são exercidos, através diretivas ou instruções ao delegado, segundo o artigo 49º, nº1 do CPA. (Se estivermos perante uma delegação hierárquica, o delegante orientará o delegado através de ordens, que exprimirão o exercício do seu poder de direção; se se tratar de uma delegação não hierárquica, o delegante só poderá emitir diretivas, que traduzirão o exercício do seu poder de superintendência.) Pode, também, revogar, anular ou substituir os atos praticados pelo órgão delegado ao abrigo da delegação de poderes, segundo o artigo 49º, nº2 do CPA, pode ser por considerar ilegal (anulação) ou por considerar inconveniente (revogação em sentido estrito), bem como revogar o próprio ato de delegação de poderes.

Outras considerações importantes:

Apenas a uma parte da competência do delegante advém do facto de existirem poderes indelegáveis, nos termos do artigo 45º do CPA, nomeadamente a globalidade dos seus poderes uma vez que o objetivo da delegação de competência é que o órgão que a está a delegar seja auxiliado no exercício da mesma e não uma renuncia, até porque, segundo o disposto do artigo 36º do CPA, verifica-se o princípio da irrenunciabilidade da competência.

O delegado deve sempre mencionar que agiu ao abrigo da delegação de poderes, nos termos do artigo 48º, nº1 do CPA, se não o fizer, gera-se a mera irregularidade do ato, ou seja, não afeta a validade, segundo o nº2 do mesmo artigo.

A delegação de poderes extingue-se, nos termos do artigo 50º do CPA, por revogação, ou por caducidade, por exemplo, quando se extingue o objeto, ou se verifica a mudança da pessoa do delegado ou do delegante (alínea b).

Assim sendo, irei expor e analisar as teses elaboradas face a esta problemática, assim como darei a minha opinião sobre a mesma.

Tese da alienação: de acordo com esta tese, a delegação de poderes é um ato de alienação ou transmissão de competência do delegante para o delegado. A titularidade dos poderes, que pertencia ao delegante antes da delegação, passa por força deste, e com fundamento na lei de habilitação, para a esfera de competência do delegado. Assim, na eventualidade de o ato de delegação de competência não produzir efeitos, o ato praticado pelo delegado encontrar-se-á ferido de incompetência.

Tese da autorização (defendida por André Gonçalves Pereira e Marcello Caetano): a lei de habilitação confere uma competência condicional ao delegado sobre as matérias em que permite a delegação. Antes da delegação, o delegado já é competente - recebe da lei de habilitação a capacidade de exercício dos poderes delegáveis. No entanto, para que os atos praticados mediante essa competência sejam válidos é necessário que o delegante lhe dê autorização. Isto é, estará sempre dependente de uma permissão do delegante para que possa exercer a sua competência.

Ao contrário da tese da alienação, o delegante não perde os seus poderes.

Se o potencial delegado praticar um ato, após a entrada em vigor da lei de habilitação, ou seja, tendo já adquirido competências, mas faltar-lhe uma autorização do delegante para poder exercê-las, estamos perante um vício de forma, pois trata-se da inobservância de uma formalidade prévia em relação ao exercício de uma competência legal existente. Portanto, seria um autêntico ato administrativo, meramente anulável por vício de forma.

Tese da transferência (defendida por Freitas do Amaral e Rogério Soares): o delegado torna-se competente por força do ato de delegação, que tem por base a lei de habilitação, e não por efeito desta (como nos diz a tese da autorização). Após o ato de delegação o delegado passará a exercer competência alheia do delegante, ou seja, não se trata de uma competência própria, mas exerce-a em nome próprio. Neste sentido, a delegação de poderes constitui uma transferência do exercício de poderes (e não da titularidade, como é o caso da tese da alienação). Consequentemente, o delegante não poderá praticar atos mediante as competências delegadas, ou seja, os seus poderes ficam suspensos, visto que houve uma transferência do exercício de poderes.

Os atos praticados a descoberto (atos praticados no âmbito da matéria delegável, mas que ainda não foram objeto de uma delegação) de delegação estão viciados de incompetência (e não vício de forma, como na tese de autorização).

Por último, a tese da flexibilidade do exercício da competência (defendida por Paulo Otero), assenta na ideia de que a lei de habilitação confere ao delegado a nua titularidade (capacidade de gozo/mero titular sem o respetivo exercício) dos seus poderes, e não o exercício destes. Deste modo, a lei apenas confere ao delegado uma competência imperfeita. Para que esta seja perfeita é necessário que exista uma lei de habilitação proveniente de um órgão legislativo que confere a nua titularidade dos poderes e um consequente ato de delegação da competência que atribui o exercíciodos mesmos. Só assim poderá o delegado exercer os seus poderes sem que estes sejam feridos de incompetência.

Por outro lado, mediante o ato de delegação, o delegante limita-se a alargar ou a comunicar o exercício dos seus poderes (que recebeu da lei de habilitação) ao potencial delegado já detentor da nua titularidade dos mesmos, mantendo a possibilidade de exercício dos seus poderes.

Ora analisando, uma a uma, a tese da alienação mostra-se incompatível com o regime previsto no artigo 36.º/1 do CPA (quanto à inalienabilidade da competência) e no artigo 49º do CPA, que permite ao delegante avocar casos compreendidos no objeto da delegação, orientar o exercício dos poderes, emitir diretivas e instruções, e revogar atos praticados pelo delegado, assim como cessar a delegação. O que significa que o delegante não aliena a sua competência, nem pode ser indiferente perante os atos do delegado - não perde a titularidade dos poderes, como a tese da alienação defende.

Relativamente à tese da autorização o delegado, apesar da necessidade de uma autorização, teria competênciaprópria para prosseguir as atribuições de uma outra pessoa coletiva, o que é contraditório com a organização orgânica administrativa que consiste no facto de cada pessoa coletiva possuir as suas atribuições e que os órgãos das pessoas coletivas têm competência para prosseguir essas mesmas atribuições. Para além disso, a revogação do ato de delegação, sendo um princípio caracterizador de toda a competência delegada (art. 49.º/2 CPA), não é compatível com a autorização do delegante, que constitui um ato constitutivo de direitos, submetido à regra geral da irrevogabilidade. Por último, a delegação de poderes é um ato espontâneo do delegante, e seguindo a lógica desta tese, o delegado teria a possibilidade de requerer a autorização junto do delegante, no entanto, tal não é possível, pois este ato depende única e exclusivamente da vontade do delegante.

De seguida, apesar de considerar que a tese defendida pelo professor Freitas do Amaral e pelo professor Paulo Otero, são as que estão mais próximas de exprimir a verdadeira natureza jurídica da delegação de poderes, no entanto, nenhuma está isenta de pontos contraditórios.

Por um lado, na tese da transferência, o delegante ao atribuir poderes ao delegado não está a atribuir uma competência, mas apenas o seu exercício, o que resulta num exercício em nome próprio de poderes alheios, o que, consequentemente, torna o delegado incompetente. Por outro lado, a tese defendida pelo professor Paulo Otero, ao aproximar-se da tese de autorização, não se adequaria numa situação em que a delegação de poderes é feita entre órgãos de pessoas coletivas diferentes, pois não faz qualquer sentido o delegado exercer uma competência própria para prosseguir atribuições alheias à sua pessoa coletiva, pois a incompetência absoluta caracteriza-se exatamente pela invasão da esfera de atribuições alheias.

Para finalizar, depois de uma grande ponderação e análise destas duas teses, reconheço que, embora ambas apresentem pontos fundamentais para esclarecer o regime da delegação de poderes, consequentemente, também apresentam alguns defeitos naturalmente, o que me faz concluir que nenhuma se articula perfeitamente com o regime jurídico da delegação de poderes. Deste modo, confesso que tive algumas dificuldades em preferir apenas uma das teses, sendo que, a meu ver, considero que, de certa forma, ambas possam ser aplicadas em ocasiões distintas, dependendo se se trata de uma delegação entre órgãos dentro da mesma pessoa coletiva ou entre pessoas coletivas diferentes.

Isto é, se se tratar de uma delegação intra subjetiva, a tese mais adequada é a do professor Paulo Otero, porque, geralmente, a ordem jurídica não atribui competências em exclusivo a um órgão, mas sim a vários. Neste sentido, não haverá qualquer problema quando a lei de habilitação atribua a mesma competência a dois órgãos, determinando que um deles, o delegante, seja o normalmente competente e o outro, o delegado, o eventualmente competente.

Sendo que tal consideração se mostra ainda relevante no âmbito da subdelegação de poderes. A tese da transferência defendida pelo professor Freitas do Amaral é insuscetível de explicar a subdelegação, porque se o delegado não tem a titularidade dos poderes por efeito da lei de habilitação, então esta tese deixa inexplicável como pode o delegado revogar atos do subdelegado. No entendimento do professor Paulo Otero, ao defender que a lei de habilitação confere a nua titularidade de poderes ao potencial delegado apresenta-se como uma consideração essencial para o entendimento da subdelegação de poderes, pois não faria sentido que o delegado pudesse exercer sobre o subdelegado os poderes típicos do delegante se não tivesse a titularidade das competências em causa, que está a subdelegar.

Se se tratar de uma delegação intersubjetiva a tese do professor Paulo Otero não se adequa nesta situação, visto que, tal como já mencionei, o ato de delegação confere ao delegado uma competência própria para prosseguir atribuições alheias à sua pessoa coletiva - incompetência absoluta. Deste modo, penso que a tese da transferência seja mais clara ao explicar a delegação intersubjetiva, uma vez que o ato de delegação leva à transferência do exercício de poderes, e não da titularidade dos mesmos, logo os atos praticados pelo delegado não estariam feridos de incompetência absoluta, uma vez que a competência do delegado não é própria, mas sim alheia, e, ao contrário de um dos argumentos apresentados contra esta tese de que não é possível separar a titularidade do exercício da competência, o professor Freitas do Amaral refere ainda que tal é possível dando o exemplo da democracia representativa e na concessão, que fundamenta a possibilidade de existir exercício de poderes sem titularidade.

Bibliografia:

AMARAL, Diogo Freitas do. O Curso de Direito Administrativo, Volume I, 4ª edição, Almedina, 2016.

OTERO, Paulo. Manual de Direito Administrativo, Almedina, 2016.


Joana Jorge, nº66650

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