A existência de Poder Local em Portugal

21-11-2022

Recentemente, o líder do maior partido opositor ao atual Governo, Luís Montenegro, numa entrevista ao Jornal de Notícias, declarou que o poder local em Portugal é bastante enfraquecido, já que as competências garantidas às autarquias locais são "básicas", acusando haver uma escassa repartição entre a administração central e local. Por sua vez, o professor Diogo Freitas do Amaral, no seu manual Curso de Direito Administrativo, reflete sobre a existência do poder local no país, concluindo que este não existe realmente. Será mesmo assim?

Primeiramente, para aferir a veracidade destes comentários, é necessário atender à definição de poder local. Segundo o mesmo professor, poder local não é sinónimo de administração local autárquica, nem de autarquia local. Implica, antes, uma descentralização jurídica, descentralização política, em que os órgãos representativos das populações locais são livremente eleitos por estas; e, finalmente, haver um amplo grau de autonomia financeira e administrativa. O professor Jorge Miranda, em Estudos sobre a Constituição, realça a importância da livre escolha do destino das autarquias locais, e a prossecução dos seus interesses e dos seus dirigentes.

A descentralização jurídica designa a distribuição do desempenho de tarefas de administração por outras entidades que não o Estado. É afirmativo que esta característica está presente no nosso ordenamento jurídico. Estas são previstas constitucionalmente, e são concretizadas nos 308 municípios e 3092 freguesias existentes no país, cujas atribuições e competências de seus membros estão presentes no seu Regime Jurídico (Lei 169/99 e Lei 75/2013).

A descentralização política, por sua vez, ocorre quando os órgãos representativos das populações locais são livremente eleitos por estas. Esta também é uma realidade portuguesa, já que a Assembleia da Freguesia, Assembleia Municipal, a Junta de Freguesia e Câmara Municipal são órgãos eleitos indireta e diretamente por sufrágio universal, como estabelecem os artigos, respetivamente, 4º, 42º/1, 24º/1 e 56º/2 da Lei 169/99, Lei que estabelece as competências e o regime jurídico das autarquias locais.

Agora, e a questão fundamental que se coloca, é saber se haverá ou não autonomia financeira e administrativa.

A autonomia administrativa mede-se pela abrangência das atribuições e competências que lhe são conferidas, uma das questões mais criticadas tanto pelo Professor Freitas do Amaral como pelo político mencionado. É necessário, então, analisar se realmente é extenso ou não o nível de descentralização do Estado, concretizado pelas atribuições e competências garantidas às autarquias locais.

Em resposta a esta crítica, primeiramente, é essencial sublinhar o número excessivo de pessoas coletivas, quer freguesias quer municípios, que compõem o elenco das autarquias locais. São 3 399 pessoas coletivas atualmente. Não esquecendo que este número aumentará já que foi aprovada uma lei no parlamento, no ano passado, que permite às freguesias o processo de reverter as agregações da reforma administrativa de 2012/2013. Esta reforma surge de uma negociação com a troika, durante o resgate económico do país, que identifica este problema de um número exagerado de freguesias e, consequentemente, cargos dirigentes.

Esta quantidade de pessoas coletivas significa um total de 35 561 autarcas, entre Presidentes de Junta de Freguesia, membros de Assembleia de Freguesia, Presidentes de Câmara Municipal e membros de Assembleia Municipal. Parece bastante contraproducente dizer-se que não há uma imputação de poderes nas autarquias locais, quando existem tantos titulares de órgãos. Se assim fosse, qual seria a necessidade de haver tantos funcionários públicos nas autarquias?

Analisando atentamente as atribuições destas pessoas coletivas e as competências dos seus órgãos integrantes, verificamos que estas não são, de todo, escassas ou tão pouco irrelevantes. António Cândido de Oliveira, em Direito das Autarquias Locais, fala do princípio da subsidiariedade no âmbito da separação vertical dos poderes, em que é garantido que os assuntos que possam ser resolvidos ao nível das autarquias locais não podem ser resolvidos a nível superior, concretizando a ideia de que o Estado apenas pode ter a seu cargo assuntos que não possam ser melhor resolvidos ao nível das Regiões Autónomas e das Autarquias Locais.

No elenco das atribuições conferidas às freguesias, a Lei das Autarquias Locais (LAL), no seu 7º artigo, prevê algumas exemplificativas, entre elas a educação, o abastecimento público, a ação social, o ordenamento urbano e rural, proteção da comunidade, desenvolvimento, entre outras. Estas estão em perfeita articulação com o mencionado como o conceito geral das atribuições destas pessoas coletivas, que consistem na promoção e salvaguarda dos interesses próprios das respetivas populações. As freguesias também realizam o recenseamento eleitoral, sendo através deste serviço que se realizam os variados processos eleitorais, administram os seus bens e aqueles sujeitos à sua jurisdição, promovem obras públicas, e, também providenciam assistência social, realizando tarefas de saúde pública.

Mais aprofundadamente, os seus órgãos têm competências especificas de extrema relevância. A Assembleia da Freguesia tem uma função decisória de relevo já que em certos casos concretos são reservados pela lei a este órgão, como prevê a Lei 75/2013. Já à Junta de Freguesia são lhe atribuídas competências, estabelecidas na mesma lei, como a participação nos planos municipais do ordenamento de território, o estudo dos problemas das regiões e a proposta de soluções, gere tudo o que está a seu cargo, desde obras, bens e finanças.

Importante, também, referir o referendo local. Graças à Lei Orgânica 4/2000, de 24 de Agosto, é possível uma freguesia submeter a referendo dos respetivos cidadãos eleitores matérias incluídas nas competências dos seus órgãos, nos casos, nos temos e com a eficácia que essa lei estabelece.

Existe uma distribuição tão grande das tarefas e uma existência tão vasta de entidades públicas de poder local que é legitimo questionar se é realmente relevante a existência de freguesias. Isto, pois, existe uma distribuição de poderes demasiado vasta resultante num número excessivo, e, na maioria dos casos, injustificado de cargos públicos, cujas competências e trabalhos podiam ser distribuídos por um menor número de efetivos. Não esquecendo também que as freguesias são algo inédito do Estado português, já que apenas se verifica a sua existência em Inglaterra e estas apenas existem em áreas rurais. É questionada, assim, a relevância de haver dois poderes de autarquia local.

Relativamente aos municípios, podemos, desde já afirmar que número de funções exercidas por esta pessoa coletiva não é, de todo, baixo. Quanto às suas atribuições, há que mencionar os domínios elencadas no art.º 23/2 da LAL, desde a energia aos transportes e comunicações, à saúde, à defesa do consumidor, à polícia municipal, à coordenação externa, entre outras.

As competências são exercidas pelos órgãos da Assembleia Municipal, Câmara Municipal e Presidente da Câmara Municipal. São as mais essenciais, exercidas pela Assembleia, a elaboração de regulamentos, como as posturas municipais, estabelecer taxas e impostos, aprovação do plano de urbanização, e outras. Já as exercidas pela Câmara são a direção dos serviços municipais, apoio ao desenvolvimento de atividades de interesse ao município, prática de atos administrativos como licenças, autorizações, e contratos administrativos como empreitadas, concessões, fornecimentos. E, finalmente, compete ao Presidente da Câmara, para além de outras, dirigir e coordenar os serviços municipais.

Tratam-se de matérias de inquestionável influência na comunidade e no país, que comprovam a existência de uma autonomia administrativa, elemento necessário, como anteriormente mencionado, para a existência do exercício do poder local em Portugal. Podendo, ainda, concluir-se que o desempenho destas competências por parte dos órgãos das autarquias locais é fulcral para uma melhor organização e desconcentração da Administração.

A questão financeira é ainda mais complexa. O investimento às autarquias locais por parte do Estado tem vindo a demonstrar-se insuficiente para que este seja financeiramente autónomo. Nas notícias mais recentes, o Governo afirmou que não tem condições para pagar despesas praticadas pelas autarquias locais no combate à covid-19, e o facto de a dívida total das Câmaras ter aumentado 48,7 milhões de euros face ao ano anterior. Porém, a Carta Europeia de Autonomia Local de 1985, aplicada também em Portugal, no seu artigo 9º número 3 estabelece que parte dos recursos financeiros das autarquias locais deve provir de rendimentos e de impostos locais, que as próprias autarquias, como anteriormente mencionado, têm o poder de taxar. Também no mesmo artigo, mas no número 8, está previsto que as autarquias locais devem ter acesso ao mercado nacional de capitais. Assim, ainda que o investimento do Estado tenha urgentemente de ser aumentado para as autarquias locais, os seus recursos não se cingem apenas a este rendimento, não esquecendo as empresas públicas criadas pelas autarquias locais, o seu património, os impostos que são cobrados, entre outros. Não esquecendo que as dotações orçamentais por parte do Estado para as autarquias locais são obrigatórias, como decorre do previsto no art.º 105 da CRP.

Por outro lado, Marcelo Rebelo de Sousa, na Introdução de Jornadas dos 40 anos do Poder Local, determina que a existência do poder local não deve ser avaliada apenas na sua eficiência, através de razões instrumentais, é uma das condições da realização de democracia e da própria liberdade individual no seio do Estado. Segundo o mesmo, pôr em causa o poder local é pôr em causa a separação vertical dos poderes, sendo que o Estado Constitucional não é apenas limitado pelos direitos individuais, mas pela própria organização interna, abrindo-se ao reconhecimento das autarquias locais.

Questão que se pode levantar é se há necessidade de uma reforma no Poder Local e na Autarquia Local. E a verdade é que, como foram aqui alguns referidos, as autarquias locais apresentam problemas graves. Contudo, e, não obstante disso, concluo que não se possa afirmar que não existe Poder Local.

BIBLIOGRAFIA

Luís Montenegro: ″Estou preparado para estar quatro anos na Oposição″ (jn.pt)

AMARAL, Diogo Freitas. Curso de Direito Administrativo, Volume I, 4ª Edição, 2015, págs. 407 e ss.

MIRANDA, Jorge. Estudos sobre a Constituição, Volume I, 1ª Edição, 1977, págs. 317 e ss.

DE OLIVEIRA, António Cândido, Direito das Autarquias Locais, 2ª Edição, 213, págs. 359 e ss.

DE OLIVEIRA, António Cândido e BATALHÃO, Carlos José, Jornadas dos 40 Anos do Poder Local, 1ª Edição, 2018, págs. 11 e ss.


Beatriz Abreu; Número: 66361; subturma 15

Crie o seu site grátis! Este site foi criado com a Webnode. Crie o seu gratuitamente agora! Comece agora