A extinção das freguesias
Tem sido debatido se o número de freguesias se justifica dada a população que Portugal apresenta, em comparação a outros países da Europa, pelo que, este trabalho tem como principal objetivo estudar e analisar criticamente esse número, com base no Direito Administrativo Português e no Direito Comparado, concluindo se seria possível uma diminuição do número de autarquias locais e em que medida.
Para enquadrar o nosso objeto de estudo, define a Constituição da República Portuguesa (CRP) no artigo 235º/1 que a "organização democrática do Estado compreende a existência de autarquias locais", sendo estas "pessoas coletivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas" (235º/2 CRP).
Para limitar o âmbito de investigação e facilitar na aplicação dos dados e estatística demonstrados posteriormente, analisaremos apenas a justificação da existência de freguesias no continente português, ainda que se possa discutir se o processo de transformação não seria semelhante para as Regiões Autónomas (RA). Assim, no "continente as autarquias locais são as freguesias, os municípios e as regiões administrativas" (236º/1. CRP), ainda que estas últimas não tenham sido instituídas em concreto. Seguindo este raciocínio, as "atribuições e a organização das autarquias locais, bem como a competência dos seus órgãos, serão reguladas por lei, de harmonia com o princípio da descentralização administrativa" (237º/1. CRP).
Depois de destacar a maioria das normas constitucionais que servem de base para o nosso estudo, cabe densificar alguns dos conceitos utilizados, designadamente "órgãos", "atribuições", "competências" e "descentralização administrativa", de forma a ser possível o aprofundamento devidamente informado e esclarecido.
Para essa densificação, adoptamos algumas das definições propostas por Diogo Freitas do Amaral, nomeadamente ao admitir que os órgãos da Administração devem ser concebidos como instituições (posição defendida por Marcelo Caetano) ou indivíduos (posição defendida por Afonso Queiró e Marques Guedes), dependendo se se analisa da perspetiva da teoria da organização administrativa ou da teoria da actividade administrativa, respectivamente[1].
Já quando se refere atribuições, considera-se, segundo o mesmo autor, "os fins ou interesses que a lei incumbe as pessoas colectivas públicas de prosseguir". Para tal ser possível, as pessoas colectivas precisam de poderes, denominados poderes funcionais, tendo o conjunto desses poderes o nome de competência[2].
No conceito de descentralização, como é indicado, e bem, depende se analisado no plano jurídico ou no plano político-administrativo. No primeiro caso seria caracterizado como "o sistema em que a função administrativa esteja confiada não apenas ao Estado, mas também a outras pessoas colectivas territoriais - designadamente autarquias locais", enquanto no segundo "quando os órgãos das autarquias locais são livremente eleitos pelas respetivas populações, quando a lei os considera independentes na órbita das suas atribuições e competências, e quando estiverem sujeitos a formas atenuantes de tutela administrativa"[3].
Por fim, isolando o nosso objeto de estudo e de modo a caracterizá-lo de forma mais incisiva, tal como foi elaborado por Freitas do Amaral, rejeitando a definição que apresentava o artigo 3º da primeira Lei das Autarquias Locais (LAL) por se apresentar algo genérica e nada característica, assim, as freguesias são "as autarquias locais que, dentro do território municipal, visam a prossecução de interesses próprios da população residente em cada circunscrição paroquial"[4].
Na Constituição da República Portuguesa, as normas que dispõem sobre as freguesias, encontram-se nos artigos 244º a 248º, conjugando ainda com o diploma que rege o quadro de competências e o regime jurídico de funcionamento dos órgãos da freguesia (Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro e ainda da Lei n.º 169/99 de 18 de Setembro, com as posteriores alterações, nas partes não revogadas pela Lei n.º 75/2013).
Enquadrando esta figura no contexto histórico português, observamos que esta teve origem eclesiástica. Num primeiro momento, isto é, desde a ocupação romana na Península Ibérica até 1830 (Revolução Liberal), a freguesia não se encontrava inserida naquela que é a estrutura da Administração Pública, sendo antes caracterizada como elemento da organização eclesiástica. A palavra "freguesia" deriva de fregueses (que, por sua vez, vem de filii eclesiae, que significa filhos da Igreja), ou seja, a comunidade dos fiéis em torno de um pároco que representa localmente o seu bispo. Aos poucos, começaram a ser atribuídas às paróquias funções da administração, não por lei, mas por costume, acrescentando-se às suas funções normais. Assim, e com base em alguns problemas que surgiram nas comunidades rurais, começaram a surgir os órgãos, eleitos pela população, nascendo o fenómeno autárquico.
Já num segundo período, a partir de 1830, com a Revolução Liberal, e até 1878, existiu uma enorme indecisão sobre se as freguesias deviam ou não fazer parte do sistema de administração local, até o Governo da Terceira transformar as freguesias em autarquias locais que, após um longo processo de retirar e restituir as funções atribuídas, acabaram por ser definitivamente retiradas pelo Código Administrativo de Costa Cabral (1842), ficando até 1878 sem alterações.
Por fim, num terceiro período, impulsionado pelo Código Administrativo de Rodrigues Sampaio (1878), as freguesias foram definitivamente introduzidas na estrutura da Administração Local, mantendo-se, grosso modo, até aos dias de hoje[5].
Em sequência dos três períodos referidos anteriormente de forma sintética, seria possível acrescentar um quarto período, mais atual e que, ainda que talvez não seja tão marcante, merece a nossa atenção, uma vez que constitui uma enorme mudança na organização das freguesias portuguesas, fomentando a discussão sobre a eficácia ou possibilidade de alterar drasticamente o número de freguesias já existentes[6].
O acontecimento citado, levou à redução de 1168 freguesias, como uma das medidas no memorando do entendimento de Portugal com a "troika", constituindo por sua vez uma reforma administrativa bastante contestada pelos autarcas e pelas populações[7].
Dada a existência de 4259 freguesias, a "troika" exigiu que se reorganizasse e diminuísse significativamente o número destas entidades de forma a reforçar "a prestação do serviço público", aumentar a "eficiência" e reduzir "custos", medida que gerou bastante contestação por parte da Associação Nacional de Freguesias (ANAFRE), considerando que não traria ganhos significativos ao país. No entanto, sem ter sido mandada para apreciação do Tribunal Constitucional, foi aprovada com os votos da maioria parlamentar e publicada em Maio de 2012. Foi neste sentido que, em 2013, foi publicado o novo regime jurídico das autarquias locais, que aumentava as diversas competências diretas atribuídas às freguesias, muitas das quais já as realizavam por delegação dos municípios. A referida "delegação" de poderes ou delegação de competências, "é o ato pelo qual um órgão da Administração, normalmente competente para decidir em determinada matéria, permite, de acordo com a lei, que outro órgão ou agente pratiquem atos administrativos sobre a mesma matéria", definição acolhida pelo Código de Procedimento Administrativo (CPA) no seu artigo 35º/1[8].
Este processo de redução constitui um começo para uma enorme reorganização administrativa, impulsionando o nosso estudo sobre a possibilidade de uma reorganização ainda mais drástica, colocando até a hipótese de extinguir por completo as freguesias.
De forma a apresentar um processo mais informado e coerente, considero uma mais valia fazer uma breve viagem pelo Direito Comparado, reparando desde logo que são poucos os países na Europa onde existem freguesias como autarquias locais. Com base nos países apresentados por Mário Rui Martins em matéria de desenvolvimento e descentralização, seria proveitoso analisar dois modelos que introduzem, à sua maneira, importantes progressos nesta investigação: a Inglaterra, por ser o único dos mais relevantes que possuiu freguesias, ainda que apenas em zonas rurais, e a França, onde o nível mais baixo de autarquias locais é o municipal, sendo estas grandes e não divididas em freguesias, ao contrário de Portugal onde as freguesias são subunidades dos municípios. Ainda que em França a única unidade seja o município, este pode ser urbano ou rural, o que, comparando com o nosso sistema, nos permite afirmar que os municípios urbanos são semelhantes aos municípios urbanos portugueses ao passo que os municípios rurais corresponderiam às freguesias rurais portuguesas, com a particularidade de não ter nenhum município a envolvê-la[9].
Com isto, estamos em condições de analisar criticamente o sistema português e concluir em que medida pode ser reorganizado. Atualmente, existem 3091 freguesias (2882 freguesias no Continente, 155 na Região Autónoma dos Açores e 54 na Região Autónoma da Madeira).
As freguesias são defendidas pela sua importância nos serviços que proporcionam à população, em particular a sua ação nas áreas da educação, cultura popular e assistência social. Muitas vezes, afirma-se que só desta forma é possível de aproximar os habitantes de certas regiões à Administração Pública ou de promover o apoio necessário às pessoas que se sentem muitas vezes esquecidas e sem a atenção necessária.
Ora, ainda que essa proximidade seja necessária para a satisfação das pessoas e eficiência da Administração, não podemos deixar de analisar o outro lado do prisma, onde se destaca uma enorme despesa para encargos com pessoal dos órgãos das freguesias que permitem o seu funcionamento. Aqui estaria então em análise os dois lados da balança: por um lado, as necessidades que as pessoas têm e a sua dificuldade no contacto com a Administração; por outro, a redução e até extinção das freguesias de modo a reduzir todos os elevados custos com a manutenção e funcionamento destas entidades públicas. Será que não será possível reorganizar as estruturas de forma a diminuir esses custos, continuando a proporcionar todas as atividades que atualmente são asseguradas pelas freguesias?
Em primeira análise, a minha resposta seria afirmativa e o processo de transformação passaria pela extinção das freguesias e a reorganização das restantes autarquias locais, processo esse que poderia revestir-se de duas formas diferentes. Esta reposta poderia ser justificada com o pressuposto de que seria possível formatar os municípios de forma que conseguissem dar c0ontinuidade ao trabalho atualmente desempenhado pelas freguesias.
O nosso sistema de administração autárquica e a constante diminuição de atribuições e recursos das freguesias leva a equacionar se realmente serão imprescindíveis, devido às limitadas competências que desempenham. Claro que este processo, na prática, poderia vir a sofrer alterações, uma vez que os blocos apresentados e desenvolvidos adiante se mostram algo inflexíveis, podendo fazer-se uma transformação híbrida. No entanto, em termos teóricos e para facilitar a explicação, assumirei que, por um lado, temos "freguesias urbanas" (incluídas na área de um município urbano) e, por outro, "freguesias rurais" (incluídas na área de um município rural)[10].
Um primeiro processo, talvez considerado mais fácil de implementar, seria o de aplicar o modelo francês ao modelo português atual, onde se extinguiriam por completo as freguesias e se reorganizariam os municípios, acrescentando até alguns para coordenar certas zonas rurais que até se poderiam agregar (isto é, antigas freguesias juntam-se e tornam-se um município, deixando de estar circunscritas pelo município que antes se encontrava nesse lugar), passando a ter apenas municípios, uns maiores e outros mais pequenos.
Existe um outro processo, talvez mais falível, requerendo uma maior flexibilidade, aliada a uma mudança substancial da mentalidade das pessoas. Este teria de se dividir em dois momentos distintos: num primeiro momento, não seria alterado o facto de freguesias serem circunscritas por um município, mas diminuiria drasticamente o número de freguesias existentes para cerca de 1400 freguesias do Continente[11], diminuição essa que encontra a sua justificação na extinção de praticamente todas as freguesias urbanas, mantendo neste primeiro momento todas as freguesias rurais. Se os únicos ou mais importantes argumentos que são utilizados para manter as freguesias seriam de ser possível manter o contacto com a administração, é realista pensar que as pessoas de freguesias urbanas se consigam deslocar com mais facilidade aos estabelecimentos dos municípios e se integrarem neste mundo complexo que é a administração em comparação às das freguesias rurais. Assim, não ferindo os pilares dos defensores da existência destas figuras, é legítimo acreditar que tal seria possível.
Neste sentido, e antes de progredir para o segundo e último momento deste processo de transformação, deveria investir-se no incentivo para a criação da figura de organização de moradores, prevista no artigo 263º da CRP, com o objetivo de intensificar a participação das populações na vida administrativa local. Portugal não tem mostrado muita abertura nesta figura, comprovado pela falta de regime para a regular, mas, a par dos EUA, da Grã-Bretanha, países nórdicos e da própria Espanha, poderíamos implementá-la. Nesta altura seria mais necessário que nunca, uma vez que as freguesias rurais foram mantidas e se antevê uma dificuldade no contacto com a administração pública, necessitando de espalhar a sua cultura e promover várias atividades dentro daquela delimitação territorial. Muitas pessoas residentes nessas freguesias não se sentem representadas e poderiam vir a gostar do facto de poderem vir a fazer parte da sua terra e a ajudar verdadeiramente a sua conservação sem se colocar directamente na vida político-administrativa e até, de certa forma, poderia levar a que as pessoas se predispusessem a ajudar mais aquela região.
Na segunda e última parte do processo estaríamos em condições de extinguir todas ou praticamente todas as freguesias (rurais) ainda existentes, com a prática continuada da figura da organização de moradores a demonstrar-se bastante útil nas atividades que por vezes as câmaras municipais desprezam, como são exemplos a limpeza de jardins, recreio das crianças, alerta para infrações ecológicas ou para a degradação de habitações, ou ainda, de modo mais geral, a propagação das tradições e auxílio a pessoas que demonstrem necessidades. Assim, mesmo com a extinção das freguesias, poderia continuar-se com as organizações de moradores pois, uma vez extintas, levar-nos-ia a fazer uma interpretação atualista do preceito, pelo que onde se lia "freguesia", passaria a ler-se "município", uma vez que tal alteração não destoaria o objetivo principal das populações participarem na vida administrativa, não entendendo em que medida as mudanças conceptuais e processuais poderiam alterar a ratio do regime.
Para concluir, com a ajuda das pessoas e, de certa forma, uma mudança de mentalidade (também as pessoas podem ajudar a tornar a administração mais próxima e ser mais eficiente nos objetivos traçados), seria possível reduzir drasticamente os custos associados às autarquias locais, mais precisamente pela existência e funcionamento das freguesias, passando a ter um maior envolvimento das pessoas nas funções públicas e consequentemente uma maior entreajuda e um equilíbrio (ou pelo menos, uma não perda significativa) na persecução dos fins a que a Administração se propõe a atingir, justificando esta transformação.
André Lopes.
[1] Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, I, Coimbra, 2007, p.759 e ss.
[2] Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, I, Coimbra, 2007, p.776 e ss.
[3] Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, I, Coimbra, 2007, p.874 e ss.
[4] Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, I, Coimbra, 2007, p.506 e ss.
[5] Divisão em três períodos feita por Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, I, Coimbra, 2007, p.509 e ss.
[6] Sobre este acontecimento, António Cândido de Oliveira, Direito das Autarquias Locais, 2ºedição, Coimbra, p.308 e ss.
[7] Como descreve o Jornal Nascer do Sol, Redução de freguesias entre as mais contestadas reformas exigidas pela "troika", 2014
[8]
Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito
Administrativo, I, Coimbra, 2007, p.838 e ss.
[9] Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, I, Coimbra, 2007, p.512 e ss.
[10] Para esta ficção, utilizarei os dados apresentados por PRODER, Classificação das Freguesias do Continente em Rurais e Não Rurais.
[11] Ficção feita através dos dados desatualizados mas de modo proporcional à realidade presente.