A Questão da Delegação de Poderes
A Delegação de Poderes consiste num ato frequentemente praticado pelos órgãos da administração que têm poder de decisão em certas matérias e, por isso mesmo, deve ser uma questão a ser tida em causa, por ser algo tão recorrente na prática administrativa (e que gera alguma divergência nos grandes engenhos do direito administrativo).
É importante salientar que, a delegação de poderes, está relacionada com a temática da concentração e desconcentração que, por sua ventura, se associam com a pessoa coletiva e precisamente com os seus órgãos autónomos dotados de decisão própria.
Contudo, para o nosso objeto de estudo, apenas vamos considerar a desconcentração administrativa, uma vez que esta implica que, o desempenho das competências dentro de uma pessoa coletiva, seja concretizado por uma pluralidade de órgãos (permitindo assim a boa administração e a eficiência administrativa).
Posto isto, é necessário constatar que a delegação de poderes consta da lei, concretamente no artigo 44º do Código de Procedimento Administrativo, do qual podemos aferir a definição desta prática e os seus próprios pressupostos. Podemos assim afirmar que, é a própria lei, a conceder que, um órgão, possa delegar noutro órgão a prática da competência que lhe é inferida.
Ora, nas palavras do Professor Freitas do Amaral, a delegação de poderes "é o ato pelo qual o órgão da Administração, normalmente competente para decidir em determinada matéria, permite, de acordo com a lei, que outro órgão ou agente pratiquem atos administrativos sobre a mesma matéria" [1]
O autor vem também salientar a existência de três requisitos essenciais para a efetivação desta: a) lei de habilitação (prevê a delegação de poderes, art.111º, nº2, CRP); b) existência de dois órgãos (o delegante e o delegado); c) prática do ato delegado.
Já na presença da enunciação dos supostos requisitos essenciais, temos a presença de certas divergências doutrinárias.
Assim, enquanto que, para o professor Diogo Freitas do Amaral, a fonte da competência do órgão delegado é o próprio ato da delegação de poderes, para o professor Paulo Otero, o fundamento encontra-se na própria lei de habilitação, pois é esta que confere a efetiva delegação da competência.
Já para o Professor João Caupers, o terceiro requisito não é a prática do ato de delegação, mas sim o peso da vontade do delegante, uma vez que, o autor, não considera imprescindível a prática de um ato jurídico para que ocorra a delegação. Para reforçar a sua tese, o professor invoca a delegação tácita.[2]
Apreciando os pontos de vista expostos pelos autores, posso considerar que, a necessária prática do ato de delegação, é fundamental para a conformação da delegação de poderes, considerando assim a tese do professor Diogo Freitas do Amaral a ideal (em comparação com a do professor João Caupers). Contudo, tal como o professor Paulo Otero refere, a lei de habilitação é extremamente importante e deve ser tida em conta, pois é a lei de habilitação que vem dar efetividade à delegação de poderes.
Porém o principal cerne das discussões doutrinárias relativas à delegação de poderes está concentrado na natureza jurídica desta. Para isso, são expostas várias doutrinas relativas a essa questão que iremos analisar e proceder a uma avaliação crítica, a saber:
- TESE DA AUTORIZAÇÃO:
Defendida pelos professores Marcello Caetano, Sérvulo Correia e André Gonçalves Pereira, considera que, o ato de delegação, consiste assim numa espécie de autorização (requisito formal) para que haja o exercício dos poderes.
O ato de delegação não consiste assim na transferência de competências do delegante para o delegado pois, a própria lei de habilitação, já lhe confere, desde logo, essa competência ao delegado. Só requer a existência de uma autorização, por parte do delegante, para que este efetivamente a possa concretizar (já é antes da delegação uma aptidão do delegado, só carece de autorização). Ora, esta tese, é facilmente refutada, visto que é o próprio ato de delegação que concede a competência se, o delegado, executar certo poder que não lhe tenha sido delegado, os seus atos são revestidos pelo vício de incompetência.
- TESE DA ALIENAÇÃO:
Esta tese assenta na transferência/alienação dos poderes pertencentes ao delegante para a esfera de competências do delegado, por estímulo deste e com alicerce na lei de habilitação. Novamente podemos refutar esta tese, afirmando que, o delegante, não perde a titularidade dos poderes e o seu exercício.
Segundo o artigo 49º do CPA, o delegante emite orientações (art.49º, nº1, CPA) para a realização da competência delegada que, segundo o professor Vasco Pereira da Silva, são orientações genéricas porque a titularidade da competência é do delegante, apenas ocorreu uma autorização (não pode dar ordens quanto ao exercício do poder) como também tem o poder de anular, revogar, avocar ou substituir o ato praticado pelo delegado realizado ao abrigo da delegação (art.49º, nº2, CPA).
- TESE DA TRANSFERÊNCIA DO EXERCÍCIO:
Defendida pelo Professor Diogo Freitas do Amaral [3], que refere que a delegação de poderes não é uma alienação pois, o delegante, não fica abstraído à competência que tenha decidido delegar não sendo também uma autorização porque, o delegado, só é competente para realizar o ato depois de lhe ser dada competência que provém do ato de delegação e não da lei de habilitação. A delegação de poderes é, assim, um ato de transferência do exercício dos poderes do delegante para o delegado. A titularidade não se transfere, permanecendo assim sempre no delegante, dando-lhe capacidade para avocar, anular, revogar ou substituir o ato praticado pelo delegado no exercício do ato de delegação (artigo 49º, nº2, CPA). Este poder de orientação, segundo o professor Diogo Freitas do Amaral, permite que o superior hierárquico possa dar ordens ao subalterno em relação a uma competência (contrariando, assim, a ideia do professor Vasco Pereira da Silva baseada nas orientações genéricas).
- A OPOSIÇÃO DO PROFESSOR PAULO OTERO:
De forma a opor-se à teoria defendida pelo professor Diogo Freitas do Amaral, o professor Paulo Otero, vem propor aquilo a que podemos chamar "tese da elasticidade do exercício da competência"[4]. Ora, para o professor Paulo Otero, a noção de que, a delegação dos poderes, consiste numa transferência de poderes, não é aceitável porque, o delegante, não perde os seus poderes aquando da transferência. Afirma ainda que, se toda a competência advém da lei, não é aceitável que, um órgão administrativo, venha a exercer poderes que lhe foram confiados por um ato de natureza administrativa (toda a competência vem da lei) a que Freitas do Amaral contrapõe com o argumento do princípio da legalidade da competência que consta do artigo 266º (nº2) da CRP.
Para o professor Paulo Otero, a delegação de poderes, consiste assim numa elasticidade da competência do exercício de poderes, permitindo, desta forma, que o delegante - e o delegado - sejam ambos competentes.
No meu ponto de vista, parece-me mais acertada a tese apresentada pelo professor Diogo Freitas do Amaral uma vez que, o delegado, só é competente para realizar determinado ato após lhe ser delegada a competência por quem, efetivamente, a possui. E, só nos referimos a uma transferência de competência. A titularidade, continua a ser do delegante e, só ele, possui direitos sobre o ato praticado pelo delegado podendo avocá-lo, anulá-lo, revogá-lo ou substituí-lo. Destarte, não ocorre uma perda dos poderes pelo delegante uma vez que, este, emite orientações genéricas para que a competência seja assim exercida pelo delegado.
Podemos assim concluir que, a delegação de poderes, ao ser um ato bastante visível na prática administrativa - como, é exemplo, a delegação de poderes de um ministro, na administração central do Estado, num diretor-geral - ou, no ramo da administração autónoma, a delegação de poderes do Presidente da Câmara num Vereador, é um quesito que levanta várias questões doutrinárias relativamente ao exercício deste ato.
[1] AMARAL, DIOGO FREITAS; "Curso de Direito Administrativo"; Volume I (página 839); 3ªEdição, Almedina; Coimbra, 2006
[2] "Entendemos que o último elemento da delegação não é um ato de delegação propriamente dito, mas a relevância da vontade do delegante. Para existir a delegação não julgamos imprescindível a prática de um ato jurídico, bastando uma omissão juridicamente relevante. É o que ocorre na chamada delegação tácita em que a lei da habilitação em vez de prever o ato de delegação considera certos poderes delegados, a não ser que o delegante manifeste a sua vontade em sentido oposto" - CAUPERS, João; "Introdução ao Direito Administrativo" (página 164), 10º Edição; Âncora Editora; Lisboa; 2009
[3] AMARAL, DIOGO FREITAS; "Curso de Direito Administrativo"; Volume I (página 857); 3ªEdição, Almedina; Coimbra; 2006
[4] OTERO, PAULO; "A Competência Delegada no Direito Administrativo Português: Conceito, Natureza e Regime"; Lisboa; 1989
Inês Ribeiro; nº66289; Subturma 15, 2ºB