A responsabilidade civil no quadro do Direito Administrativo
A doutrina diverge quando, na lógica do Direito Administrativo, se abre o tema da responsabilidade civil. Há uma problemática inerente à dualidade entre atos de gestão pública e atos de gestão privada, que remonta aos traumas da infância difícil do Direito Administrativo.
Por força do caso de Agnès Blanco, criança de cinco anos atropelada em Bordéus por um comboio de uma empresa pública de tabaco, à qual foi negada uma indemnização pelas lesões graves que guardou para toda uma vida, a concepção tradicional do Direito Administrativo nasce de cariz autoritário e agressivo. O tribunal de Bordéus, nesta época da instauração do Constitucionalismo Liberal, negou ser competente para julgar o caso, uma vez que estava em causa a Administração Pública. O decorrer do caso, entre outros tribunais e outras instâncias, rondou a questão da incompetência e da inexistência de normas aplicáveis, como quem "atira a batata quente", até que o Conselho de Estado reconheceu que a competência era do âmbito dos tribunais administrativos (que na altura pertenciam à função administrativa, e sobre este assunto, veja-se o anterior trauma relacionado com a promiscuidade entre a justiça e a administração) e que, contudo, não havia Direito que resolvesse o caso entre o particular e a empresa pública. Até hoje, este trauma traduz-se, entre outros exemplos, em alguns comportamentos de autocontenção dos juízes, e em questões de responsabilidade civil: entendia-se que a Administração não devia estar sujeita a uma responsabilidade civil igual à dos particulares.
A responsabilidade civil sofria assim de uma esquizofrenia no binómio atos de gestão privada/atos de gestão pública. Os atos de gestão privada correspondiam aos praticados na lógica do Direito Civil, julgados por tribunais judiciais; os atos de gestão pública associavam-se aos praticados no plano do Direito Administrativo e controlados pelos tribunais administrativos. Em que medida é esta dualidade transtornada?
Ora, aos órgãos estão associados titulares. Cada titular é, em si, um particular. A linha entre os atos praticados ao abrigo da dita função e na prossecução das suas atribuições, e os que não são é muito torta e ténue. É que, em bom rigor, muitas condutas praticadas ao abrigo da função administrativa são atos administrativos informais. Suponha-se o caso de um motorista ao serviço do Ministro da Administração Interna que, em excesso de velocidade, atropela um cidadão que não sobrevive ao acidente. Se se tratasse de um mero particular, a questão resolver-se-ia pela indubitável responsabilidade civil. O facto de o motorista estar sob a direção do Ministro, tendo recebido uma ordem deste teor, que acarreta uma ilegalidade por violação do Código da Estrada, não deveria resolver-se de maneira diferente. É certo que a legitimidade para emitir uma ordem advém da relação hierárquica entre os dois sujeitos. A questão resolve-se com o princípio da legalidade, constante do art.º 3.º/1 CPA: a prática de um acto administrativo pressupõe uma lei habilitante; uma ordem ilegal, pela sua própria natureza, não é habilitada por lei. Assim, no meu entendimento, a responsabilidade aplicada à hipótese de o acidente ter ocorrido entre dois particulares, deveria sofrer uma translação para o Ministro, com as necessárias adaptações.
O Professor Vasco Pereira da Silva defende a unificação do regime de responsabilidade civil aplicável aos atos de gestão privada e aos atos de gestão pública. Em 2005, foi promulgada uma nova lei de responsabilidade administrativa - Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro -, que contribui para a consolidação do regime. No seu art.º 1.º/1, propõe-se a reger as questões de responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas coletivas de direito público, por danos resultantes do exercício de várias funções e, entre elas, a administrativa. O número seguinte do mesmo preceito delimita o conceito de exercício da função administrativa: "correspondem ao exercício da função administrativa as ações e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo". O art.º 7.º/1 estipula que "O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos que resultem de acções ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício".
Beatriz Bastos, n.º 66313