Análise de jurisprudência

27-05-2023


Análise de jurisprudência

Por Henrique Matos

Processo:01955/16.9BEBRG

Emissor:TCAN

Data do acórdão:15/05/2020


Resumo do litígio :


A Autora invoca, em síntese, que, apesar das eventuais falhas e vicissitudes que possam ter ocorrido no procedimento de certificação PME, se impõe, do ponto de vista material, a sua qualificação como —Média Empresa", pelo que o ato impugnado ao ter por pressuposto que a Autora não se enquadra na qualificação de PME incorre em vício de erro sobre os pressupostos de facto e de direito, por manifesto desrespeito das disposições conjugadas dos artigos 3.°, alínea o) e 9.°, n.° 1, alínea c), do enquadramento nacional (Decreto-Lei n.° 65/2009), 2.°, 3.° e 6.° do Anexo I à Recomendação 2003/361/CE, 25.°, n.° 1, alínea a), do Regulamento do Sistema de Incentivos à Inovação (anexo à Portaria n.° 1464/2007, de 15 de novembro, alterado e republicado pela Portaria n.° 353-C/2009, de 3 de abril) e das cláusulas 9.a, n.° 1, alínea a) e 14.a, n.° 1, alínea a) do Contrato de concessão de incentivos.

Refere que as finalidades inerentes à exigência de certificação eletrónica foram totalmente asseguradas através da demonstração de que a Autora está materialmente dentro dos critérios de qualificação como PME, alegando que a Entidade Demandada violou o princípio da boa-fé, na sua vertente de primazia da materialidade subjacente, consagrado no artigo 10.° do CPA.


As questões que primeiramente cumpre decidir, consistem em saber se o princípio da boa-fé impõe que se reconheça o estatuto de PME a uma empresa em relação à qual tenham sido revogados os certificados de PME se os pressupostos necessários a tal qualificação se verificarem e se pode existir a atribuição da certificação de PME fora do procedimento de certificação eletrónica.


A Autora apela na sua argumentação ao princípio da boa-fé(art 10 cpa), na sua vertente de primazia da materialidade subjacente. Cita, para o efeito, apagar Diogo Freitas do Amaral quando este refere que "(…) A primazia da materialidade subjacente, desvalorizando excessos formais, vem cobrir todas as situações em que as exigência formais desrespeitadas não devam implicar uma decisão negativa, nomeadamente se as finalidades que a forma protege chegaram a atingir-se".


Do referido princípio pode, de facto, ser extraída a supremacia da materialidade subjacente à relação jurídica administrativa numa ótica de justiça. Note-se que o artigo 60.°, n.° 1, do CPA, inserido na parte III do Código, que rege sobre o procedimento administrativo, dispõe, em consonância com o artigo 10.° transcrito, que os órgãos da Administração Pública e os interessados devem cooperar entre si, com vista à fixação rigorosa dos pressupostos de decisão e à obtenção de decisões legais e justas.

Sucede, porém, que a necessidade de um determinado ato ser praticado dentro do procedimento administrativo respectivo e legalmente previsto não é uma mera formalidade. É sabido que o procedimento administrativo corresponde a um modo de realização do Direito Administrativo. Por essa razão é que é nulo o ato administrativo praticado (salvo em estado de necessidade) com preterição total do procedimento legalmente exigido (artigo 161.°, n.° 2, alínea l), do CPA).


Acresce que a solução preconizada pela Autora permitiria contornar, sem qualquer fundamento legal para o efeito, a existência dos atos de revogação das certificações de PME, praticados pela Entidade Demandada, e entretanto consolidados na ordem jurídica. O inconformismo da Autora quanto à ausência de qualificação como —Média Empresa" por parte da Entidade Demandada deveria ter sido manifestado, através dos meios procedimentais e/ou processuais próprios, no momento da prática dos sucessivos atos de revogação da Certificação de PME emitidos.

Impõe-se assim responder às questões acima enunciadas de forma negativa: por um lado, o princípio da boa-fé não impõe que se reconheça o estatuto de PME a uma empresa em relação à qual tenham sido revogados os certificados de PME se os pressupostos necessários a tal qualificação se verificarem, a não ser que tais atos de revogação tenham sido sindicados administrativa e/ou judicialmente com sucesso; por outro lado, não está legalmente prevista a atribuição da certificação de PME fora do procedimento de certificação eletrónica.


Decompondo a motivação que se vem ora de transcrever, dir-se-á que a improcedência da causa de invalidade em análise mostra-se estribada no entendimento do Tribunal a quo [aqui sintetizado] de que:

(i.1) a certificação das Pequenas e Médias Empresas depende de um procedimento administrativo próprio que culmina com a prática de um ato administrativo de aceitação ou de recusa do pedido de certificação;

(i.2) Esta certificação é obrigatória para todas as entidades envolvidas em procedimentos que exijam o estatuto de PME, designadamente os organismos da administração indireta do Estado;

(i.3) Não se pode admitir que uma empresa possa beneficiar do referido estatuto do PME sem que tenha desencadeado o procedimento próprio e sem que tenha sido emitido o ato decisório adequado no âmbito do mesmo, sob pena de afronta dos mais elementares princípios de Direito Administrativo, como os princípios da legalidade e da igualdade [artigo 266.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa e artigo 3.° e 6.° do CPA];

(i.4) Não surge a posição explanada em (i.3) minimamente abalada com o argumento aduzido pela Autora no sentido da primazia da materialidade subjacente enquanto vertente intrínseca do princípio da boa-fé, já que este não impõe que se reconheça o estatuto de PME a uma empresa em relação à qual tenham sido revogados os certificados de PME se os pressupostos necessários a tal qualificação se verificarem, a não ser que tais atos de revogação tenham sido sindicados administrativa e/ou judicialmente com sucesso,;

(i.5) Assim, não estando legalmente prevista a atribuição da certificação de PME fora do procedimento de certificação eletrónica e não dispondo a Autora de certificação PME, atentas as revogações ocorridas, forçoso é concluir que a mesma incumpriu o disposto na cláusula quinta acabada de referir, razão pela qual a Entidade Demandada resolveu, e bem, o contrato celebrado, nos termos da cláusula décima quarta do mesmo.


A Recorrente insurge-se contra o assim entendido e decidido, e mantém a firme convicção de que, contrariamente ao sustentado na sentença recorrida, o procedimento de certificação eletrónica não se destina a atribuir o estatuto de PME, nem a qualificar as empresas como tal, destinando-se, tão só, à sua comprovação, já que o enquadramento e qualificação de uma empresa como PME depende apenas de a sua realidade material o permitir, em face das exigências da Recomendação nº. 2003/361/CE.Assim, sendo a certificação uma mera formalidade, pode ser desconsiderado o respetivo cumprimento quando se mostrem alcançadas as finalidades subjacentes à respetiva consagração à luz do princípio da primazia da materialidade [vertente da boa-fé], o que se impõe no caso recursivo em análise, já [a Recorrente] que sempre preencheu os pressupostos materiais para poder ser qualificada como P.M.E., e, de modo, beneficiar do Sistema de Incentivos.


Tribunal nao concorda. Adiante-se, desde já, que a constelação argumentativa aduzida pela Recorrente, e que se vem ora de expor, é incapaz de fulminar a sentença recorrida com imputado erro de julgamento de direito.


Pretende, porém, a Recorrente que seja desconsiderada a expressa previsão de certificação eletrónica do estatuto da PME, já que, no seu entender, se trata de uma mera formalidade cujo cumprimento pode ser dispensado quando se mostrem alcançadas as finalidades subjacentes à respetiva consagração à luz do princípio da primazia da materialidade [vertente da boa-fé].


Recorde-se que a sentença recorrida desatendeu expressamente tal pretensão, por perfilhar o entendimento de que não é admissível que uma empresa possa beneficiar do referido estatuto do PME sem que tenha desencadeado o procedimento próprio e sem que tenha sido emitido o ato decisório adequado no âmbito do mesmo, sob pena de afronta dos mais elementares princípios de Direito Administrativo, como os princípios da legalidade e da igualdade.

Tcan concorda ,Subscrevemos este julgamento preconizado pelo Tribunal a quo com um grau adicional de fundamentação, e que se prende com o princípio da força obrigatória dos contratos.

Na verdade, a admitir-se a hipótese que, não obstante o teor da apontada cláusula 5º do contrato de concessão de incentivos financeiros, seria possível a uma entidade que visse os seus certificados revogados considerar-se como uma entidade certificada PME desde que na posse dos pressupostos materiais para poder ser qualificada como P.M.E., sempre estaria encontrada uma solução não querida pelo legislador de escapar ao princípio da força obrigatória dos contratos e às consequências derivadas do incumprimento dos mesmos, o que não é de admitir, sob pena de atravessamento dos valores da segurança jurídica e da proteção da confiança perante expectativas criadas com a celebração do contrato


Recorrente não pode obter, por via da proteção que é conferida pelo princípio da boa-fé, na vertente da primazia da materialidade subjacente, uma solução para a sua situação de incumprimento contratual.

Na verdade, a proteção conferida pelo princípio invocado só pode funcionar no contexto do respeito da conformidade contratual e da vontade das partes, o que não sucede no caso em análise.

Efetivamente, ainda que se considerasse que a Recorrente detinha os pressupostos materiais para poder ser qualificada como P.M.E, o que não se tem como minimamente líquido, sublinhe-se, não é aceitável, nem admissível, que aquele princípio, ou qualquer dos outros por si invocados, crie ou mantenha uma situação contrária aos valores e princípios disciplinadores do direito contratual somente para tutelar a expectativa que a Recorrente invoca.

Donde se conclui, também pelo que o se vem de expor, que a solução jurídica encontrada pelo julgador a quo está de acordo, para além do dever de obediência à lei [aqui entendida em sentido lato] plasmado no nº. 2 do artigo 8º do Código Civil, com as regras hermenêuticas consagradas no artigo 9º do mesmo diploma legal, o que determina a prejudicialidade da remanescente argumentação aduzida no domínio do invocado erro dos pressupostos.

Nesta esteira, é de manifesta evidência de que a sentença recorrida, no trecho em análise, não enferma do erro de julgamento de direito em análise.

Mercê de tudo o quanto ficou exposto, deverá ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional e mantida a decisão judicial recorrida.


O que está em causa ?

A autora alega violação do princípio da boa fe na vertente da primazia da materialidade subjacente consagrado no art 10 cpa

Saber se o princípio da boa-fé impõe que se reconheça o estatuto de PME a uma empresa em relação à qual tenham sido revogados os certificados de PME se os pressupostos necessários a tal qualificação se verificarem e se pode existir a atribuição da certificação de PME fora do procedimento de certificação eletrónica. Sustenta que a formalidade electrónica não é essencial (mas já vimos que não está prevista sequer outra forma ).


Decisão:

Negar provimento do recurso ,e bem a meu ver , visto que nao se pode obter, por via da proteção que é conferida pelo princípio da boa-fé, aferida na vertente da primazia da materialidade subjacente, uma solução para uma situação de incumprimento contratual, sob pena de atravessamento dos valores da segurança jurídica e da proteção da confiança perante expectativas criadas com a celebração do contrato.

Principais Motivos que levam o tribunal a tomar a decisão de negar provimento do recurso)

(síntese)


-solução preconizada pela Autora permitiria contornar,a existência dos atos de revogação das certificações de PME, praticados pela Entidade Demandada, e entretanto consolidados na ordem jurídica

-A Recorrente não pode obter, por via da proteção que é conferida pelo princípio da boa-fé, na vertente da primazia da materialidade subjacente, uma solução para a sua situação de incumprimento contratual.

-Mesmo se considerasse que a Recorrente detinha os pressupostos materiais para poder ser qualificada como P.M.E, não é admissível, que aquele princípio, ou qualquer dos outros por si invocados, crie ou mantenha uma situação contrária aos valores e princípios disciplinadores do direito contratual somente para tutelar a expectativa que a Recorrente invoca.

- a solução jurídica encontrada pelo julgador a quo está de acordo, para além do dever de obediência à lei [aqui entendida em sentido lato] plasmado no nº. 2 do artigo 8º do Código Civil, com as regras hermenêuticas consagradas no artigo 9º do mesmo diploma legal, o que determina a prejudicialidade da remanescente argumentação aduzida no domínio do invocado erro dos pressupostos.

-Ao que acresce os fundamentos da o tribunal a quo (i1-i5), com especial atenção para o i3 e i4 que relembra a importância e até mesmo de prevalência dos princípios da legalidade e da igualdade [artigo 266.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa e artigo 3.° e 6.° do CPA] que explicam que primazia da materialidade subjacente não impõe que se reconheça o estatuto de PME a uma empresa em relação à qual tenham sido revogados os certificados de PME se os pressupostos necessários a tal qualificação se verificarem.


Doutrina :

O princípio da boa fé que hoje em dia conta não só com consagração no art 10 cpa como consagração constitucional no artigo 266/2 crp, ideia da consagração da boa fe no direito administrativo foi criar condições para haver um clima de confiança e previsibilidade no seio da administração pública .

A boa fé é constituída pelo tutela da confiança e pela primazia da materialidade subjacente.

Quanto à tutela da confiança há 4 pressupostos a ter em conta , são eles:

-existência de uma situação de confiança (boa fé subjetiva da pessoa lesada)

-justificação dessa confiança , ou seja existência de elementos objetivos capazes de provocarem uma crença plausível

-investimentos da confiança , desenvolvimento efetivo de atividades jurídicas assentes sobre uma crença consubstanciada

- imputação da confiança,implicando a existência de um ator a quem se deva entrega confiante do tutelado.

Freitas do Amaral, entende que não existe uma hierarquia entre os requisitos e que em absoluto não são todos indispensáveis , sustenta que a falta de um pode ser compensada pela intensidade especial os restantes

A primazia da materialidade subjacente dizem nos Rebelo de Sousa e Salgado Matos que consiste na ideia de que o direito procura a obtenção de resultados efetivos , não se satisfazendo com comportamentos ,que embora formalmente correspondam a tais objetivos ,falhem em atingi-los substancialmente . É isto que proíbe a exercício de posições jurídicas de modo desequilibrado ou o aproveitamento de uma ilegalidade cometida. Contudo alertam estes professores que esta vertente não tem grande relevância para o direito administrativo porque o seu conteúdo é praticamente todo restringido pelo princípio da legalidade e porque o seu conteúdo útil pouco ou nada acrescenta ao princípio da proporcionalidade.


bibliografia:

DE SOUSA ,Marcelo Rebelo / DE MATOS, André Salgado ,Direito Administrativo Geral, Tomo I, 5ª ed., 2014.

DE ALMEIDA ,MÁRIO AROSO , Teoria Geral do Direito Administrativo, 2º ed. Coimbra, 2015.

DO AMARAL, DIOGO FREITAS , Curso de Direito Administrativo, Coimbra, e Vol. II, 3ª ed. 2016

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