Apreciação e esclarecimentos do Perito em Direito Constitucional
1. Análise do direito à habitação à luz do Direito Constitucional português
Incumbe ao Estado, nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 65º da Lei Fundamental, artigo este último que vem regular o direito à habitação como norma especial relativamente ao direito constitucional geral que protege a família (passemos a citar "Todos têm direito, para si e para a sua família, uma habitação de dimensão adequada em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar" - 65º/1 da CRP), a definição e execução de uma política de habitação, inserida em planos de ordenamento geral do território.
Assim, como extraímos do aludido por Gomes Canotilho e Vital Moreira , não será apenas um direito à habitação individual mas também familiar, e o mesmo integrará um direito aos equipamentos sociais adequados, permitindo a sua fruição, envolvendo-se esta matéria numa política urbana global (cfr. artigo 65º/2, alínea a) da CRP).
Primeiramente, e como ressalta da doutrina de Rui Medeiros e Jorge Miranda [pág. 670] o direito à habitação não se confunde com o direito de propriedade, não se reconduzindo o dito direito a um arranjo jurídico de título principal como direito a ter uma habitação num imóvel da propriedade do cidadão (cft. Acórdão nº 649/99 do Tribunal Constitucional) - a penhora de um imóvel, uma expropriação, que opere onde se situe o local de habitação do agregado familiar tido em apreço não viola intrinsecamente "o direito a que todos têm de haver, para si e para a sua família, uma habitação de dimensão adequada" (confira-se novamente o artigo 65º/1 da CRP). Em segundo lugar, e tornemos a remeter para a doutrina citada supra, o direito à habitação constitucionalmente protegido visa a manutenção de um direito a habitar, mas não um direito de não habitar (vejam-se os acórdãos nº 32/97; nº 570/01; nº 212/03).
Deste modo, não se vê programado nas normas do artigo 65º da CRP a viabilidade de o arrendatário não permanecer ou não habitar por tempo indeterminado em prédio arrendado, sendo inequívoco um dever do Estado para com a comunidade em fazer habitar o prédio urbano deixe à desocupação, sob pena, e como nos parece mais do que lógico ou irrefutável, de se cair no subaproveitamento de espaços que, albergando todas as condições, sirva para efeitos do cumprimento do sistema de renda compatível com o rendimento familiar, previsto no nº 3 do mesmo artigo, no âmbito das políticas de habitação de resto incumbidas ao Estado, como havíamos referido.
Deixa-se apenas, como vimos, com abertura a problemas de constitucionalidade, um ato assim contrário, que não redirecione ou que não reajuste os recursos urbanísticos a fim de assegurar local a habitar a todas as famílias (cfr. artigo 67º da CRP no concernente à proteção familiar), e de que infra veremos o fundamento constitucional das expropriações que sirvam o interesse público, designadamente através do artigo 65º/4 da CRP.
Na qualidade de direito à habitação como direito de defesa (remeta-se novamente para a doutrina de Gomes Canotilho e Vital Moreira), entendemos que, na mesma medida que deva-se impor limites a determinadas situações de penhora ou despejo da morada de família, a fim de proteger o seu direito, será imperativo também uma defesa, nem que de si indiretamente relacionada, contra a situação de prédios urbanos devolutos, que habilmente servirão em proporção e de forma adequada, interesses das famílias que necessitarão de ver o direito em causa assegurado. Importa salientar a dimensão do direito à habitação como um direito a prestações do Estado (vide Rui Medeiros e Jorge Miranda, pág. 667), alcançada muitas vezes através da atuação direta de um Estado prestacionista, mas na vertente de promotor de habitação, garantido os critérios objetivos e imparciais no acesso dos interessados às habitações disponíveis no sector público [e já não conferindo de imediato uma prestação efetiva, mediante a disponibilização de uma habitação].
Ora, assim, o Estado, juntamente com as regiões autónomas e as autarquias locais, no âmbito da sua esfera concorrencial, é competente para a definição das regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, nomeadamente através de instrumentos de planeamento no quadro das leis respetivas do ordenamento do território e do urbanismo, podendo proceder às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística, nos termos do nº 4 do artigo 65º da CRP, e como havemos supra explanado e agora especificado a sua fundamentação normativa na Constituição.
O direito à habitação tem como sujeito passivo o Estado lato sensu (abrangendo, por isso, as regiões autónomas e as autarquias locais), e não os proprietários ou senhorios [Rui Medeiros e Jorge Miranda, pág. 669] - sendo que o nº 2 do artigo 65º da CRP remete para o Estado um conjunto de incumbências que visam assegurar o direito de todos, sublinhe-se, à habitação. Já o nº 3 e o nº 4 do mesmo artigo têm, do mesmo modo, como destinatários os poderes públicos. Conclui-se que os destinatários do direito à habitação são o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais [Rui Medeiros e Jorge Miranda, pág. 670].
2. Enquadramento com o direito de propriedade privada constitucionalmente protegido
Ainda que se defenda na doutrina o superior interesse de ordenamento urbanístico a fim de prover a todos uma habitação condigna, é certo que esse provimento não se consubstanciará na atribuição direta de edifício ou fração de edifício na propriedade de outrem que o desocupou, ou de não dele fez uso, a quem de momento necessite, em clara violação aberta, intolerável e desproporcionada de um direito de propriedade, mas antes, na viabilização de regimes como este em apreço do arrendamento forçado e, repita-se, na definição dos critérios de acessibilidade conforme ao rendimento de cada agregado familiar e no âmbito da política urbana geral definida por lei e com habilitação constitucional.
Sumariamente:
- A expropriação dos solos urbanos, com habilitação nas normas do artigo 65º da CRP e nas respetivas leis sobre o ordenamento do território e do urbanismo, a ser desenvolvidas quanto às regras de ocupação, uso e transformação dos solos pelo Estado, regiões autónomas e autarquias locais, não viola intrinsecamente o direito à habitação, sendo a este conforme e afigurando-se como medida protetiva a este mesmo;
- A satisfação de fins de utilidade pública urbanística (65º/4 da CRP), viabilizando uma expropriação, sobrepõe-se ao direito de propriedade (62º da CRP); Consideração do Estado como sujeito passivo do direito à habitação e já não o proprietário, este último antes destinatário do referido direito de propriedade;
- Não ignorando totalmente o direito de propriedade na Lei Fundamental consagrado (62º da CRP), cumpre ao Estado, em face da iminência da desocupação, providenciar uma habitação alternativa - Acórdãos nº 151/92, nº 685/99 e nº 465/01 do Tribunal Constitucional);
Perito em Direito Constitucional: Jorge Blanco Otero de Morais, Mestre e Doutorado em Direito, Rua dos Direitos Fundamentais 59, Lisboa, Portugal.
As Advogadas do Governo,
Beatriz Polónio, Carolina Pina, Inês Ribeiro, Maria Marques, Raquel Antunes, Raquel Ponge.
Bibliografia
MIRANDA, Jorge/Medeiros Rui, "Constituição Portuguesa Anotada", Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, (2010).
VITAL, Moreira e Gomes Canotilho "Constituição da República Portuguesa Anotada", V. I, 4ª Edição revista, Coimbra Editora, (2007).