Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 2 de Junho de 2021Processo n.o 2350/10.9
Importa, antes de tecer qualquer comentário relativamente ao conteúdo do presente acórdão, realizar um breve resumo dos factos e alegações de cada parte, que se consideram mais relevantes, em termos de contributo que tiveram, a meu ver, para a decisão final.
O Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos pretende que o Ministério do Estado e das Finanças pratique os atos administrativos necessários ao restabelecimento dos "procedimentos internos (...) e concursais" que cessaram. Por outro lado, o Ministério do Estado e das Finanças é autor do despacho que estipula que esses atos devem cessar.
O Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa tem a ação como procedente, querendo isto dizer que anula o despacho por preterição da audiência prévia e dispõe que, se o Ministério do Estado e das Finanças quiser repetir o ato anulado, tem de cumprir a formalidade (audiência prévia).
O Ministério do Estado e das Finanças recorre, então, ao Supremo Tribunal Administrativo, alegando que a decisão recorrida padece do vício de excesso de pronúncia; parte do princípio errôneo de que a entrada em vigor do despacho ocorre em datas que não correspondem à real entrada em vigor; afirma que o ato é um ato preparatório do procedimento concursal, ou seja, um ato administrativo com efeitos externos, lesivos, que incidem na esfera jurídica dos interessados; esta percepção seria errada, de acordo com o MEF, uma vez que se trata de uma orientação genérica no "âmbito de competências de coordenação e controlo da atividade financeira e políticas de gestão".
O Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos contra-alega que: se trata de um ato administrativo com efeitos lesivos nas esfera dos interessados e que padece de vícios de forma; que houve a preterição de audiência prévia e falta de fundamentação; viola ainda o princípio da boa-fé, na vertente da tutela da confiança.
O Supremo Tribunal Administrativo revoga a decisão recorrida por padecer do vício de excesso de pronúncia; porque o ato em causa é um ato preparatório e que os seus efeitos não atingem esferas jurídicas de terceiros, afirmando ainda que se trata de uma orientação, cujos destinatários são os "órgãos e serviços da administração central (...)", o que significa que é uma orientação interna, no âmbito das relações hierárquicas interorgânicas; afirma que a garantia de participação dos interessados pertence aos interessados obrigatórios (os interessados facultativos só seriam ouvidos caso fosse conveniente).
Não obstante este acórdão abordar variados temas, conforme o exposto, a presente análise focar-se-á apenas nos seguintes: na natureza do ato administrativo; no direito à audiência prévia (nomeadamente, se é um direito instrumental ou fundamental) e, por último, no dever de fundamentação do ato administrativo (em concreto, se este constitui um verdadeiro direito fundamental, assim como nos efeitos do seu afastamento).
Atos administrativos e atos internos
Conceito de "ato administrativo" e algumas propriedades associadas
Um ato pode ser classificado como um ato administrativo, de acordo com o Professor Mário Aroso de Almeida, quando se trata de um "ato jurídico unilateral que introduz uma definição unilateral de situações jurídicas no exercício da função administrativa".
No Código de Procedimento Administrativo (CPA) é nos apresentada, no artigo 148.o, a definição legal de ato administrativo, da qual consta que "Para efeitos do presente Código, consideram-se atos administrativos as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos externos numa situação individual e concreta".
As propriedades típicas do conteúdo do ato, que se podem extrair deste preceito, prendem-se com a sua natureza individual, ou seja, com a existência de um destinatário determinável através do conteúdo do ato, mesmo que seja um conjunto de destinatários, e concreto, o que significa que os seus efeitos se esgotam no caso concreto, não tendo vigência sucessiva.
Outra propriedade que é relevante para a compreensão deste conceito, é a propriedade decisória. Nos termos do preceito em causa, o ato é uma decisão adotada no exercício de poderes jurídico-administrativos. A maioria da doutrina inclina-se para o entendimento de que se trata de decisão no sentido estrito; ou seja: a concepção dominante é de que, com a inclusão desta propriedade, o legislador pretendeu excluir deste conceito, os atos (lato sensu) praticados pela Administração que não se reportam à resolução de um caso concreto. Por sua vez, o Professor Vasco Pereira da Silva defende que, para se tratar de um ato administrativo, não é necessário que se trate de uma decisão.
De acordo com o Professor Rogério Soares, aos atos jurídicos que não contêm decisões, desenvolvendo uma função auxiliar no que concerne aos atos administrativos, designamos de atos instrumentais (que podem ser atos preparatórios ou interativos de eficácia). Estes não produzem efeitos jurídicos no ordenamento jurídico geral, manifestando a sua influência nos ditos atos administrativos, que são seu pressuposto. Alguns exemplos destes tipos de atos são pareceres jurídicos, verificações, avaliações, comunicações, entre outros.
Relativamente à propriedade que dita que os atos administrativos se cingem aos atos que "visem produzir efeitos jurídicos externos", importa aprofundar a discussão doutrinária que surge à sua volta.
2. Efeitos externos do ato administrativo
Com a ressalva dos possíveis efeitos que o ato possa acarretar, o legislador pretendeu estipular que apenas aos atos com efeitos externos se justificaria aplicar o regime do procedimento do ato administrativo que consta do CPA. Contudo, esta parte do pressuposto que há atos administrativos que não produzem efeitos externos nas esferas jurídicas de terceiros (como exemplo destes, costuma referir-se, precisamente, as ordens de órgãos hierarquicamente superiores, dirigidas aos seus subordinados).
A maioria da doutrina admite a potencialidade que cada ato administrativo tem de afetar terceiros, em abstrato. Alguns Professores, como é o caso do Professor Mário Aroso de Almeida, defendem que, em certos casos concretos, os efeitos externos não se verificam; por oposição, outros Professores, como o Professor Vasco Pereira da Silva, afirmam que em todo e qualquer caso, é possível verificar algum tipo de impacto desse ato administrativo, em esferas jurídicas de terceiros.
No caso concreto, esta discussão assume o mais crucial papel. Por um lado, o Sindicato dos Trabalhadores de Impostos sustenta que o ato que, sob a forma de "ordem", obedecendo ao despacho do Ministério, interrompeu os "procedimentos concursais (...)", se trata de um verdadeiro ato administrativo, com efeitos externos lesivos, que incidiram nas esferas jurídicas dos interessados que haviam concorrido.
Por outro lado, o Ministério do Estado e das Finanças argumenta que, tratando-se de uma "orientação genéricas no âmbito de competências de coordenação e controlo da atividade financeira e políticas de gestão (...)", cujos destinatários se limitavam aos dirigentes máximos e aos órgãos de gestão, que detinham a competência necessária para fazer cumprir o despacho (ou seja, que o despacho, em si, não determina efeitos lesivos na situação individual dos "concursados").
3. Consequências da classificação do ato como ato administrativo com efeitos externos
Como já foi mencionado, esta distinção releva no caso concreto, uma vez que, se se tratar de um ato com efeitos externos, se trata de um ato administrativo que está, portanto, sujeito ao regime e procedimento estipulados no CPA. A decisão recorrida anulou o ato condenando o Ministério a, caso quisesse repetir o ato, obedecer ao procedimento do ato (cujo regime se encontra nos artigos 102.o e seguintes do CPA), nomeadamente à realização de uma audiência prévia (artigo 121.o do CPA); por oposição o presente acórdão classifica o ato como um ato com efeitos exclusivamente internos, julgado o recurso procedente.
A meu ver, trata-se de um ato administrativo com efeitos externos, pois, mesmo não sendo esta orientação que dará por interrompido o processo concursal (..), é a decisão que determina que tal irá suceder e que, simultaneamente, atribui competência para outro órgão o fazer. Assim, indiretamente, esta ordem tem efeitos externos lesivos na esfera jurídica dos concursados, merecendo, por essa razão, ser sujeito ao regime dos artigos 148.o e seguintes do CPA, assim como ao procedimento constante dos artigos 102.o e seguintes do mesmo código. Deste modo, o presente ato deveria ter sido submetido ao procedimento devido, .
Preterição da audiência prévia
Apesar de já se ter concluído que o ato em causa seria, na minha opinião, nulo, por se tratar de um ato administrativo, indissociável da sua eficácia externa, e ter havido inobservância total do procedimento aplicável aos mesmos, importa analisar outros possíveis vícios levantados pela decisão que consta do presente acórdão, sendo um deles a preterição da audiência prévia.
O Professor Diogo Freitas do Amaral define procedimento administrativo como a "sequência juridicamente ordenada de atos e formalidades tendentes à preparação e exteriorização da prática de um ato da administração ou à sua execução".
Conforme resulta do artigo 267.o/5 da Constituição da República Portuguesa (CRP), a regulamentação do procedimento administrativo é de grande interesse geral, nomeadamente, para salvaguardar os interesses dos particulares, para que não sejam ilegalmente ou excessivamente lesados, e para assegurar a participação dos cidadãos no processo de formação de decisões que os afetem, entre outros motivos. Discute-se na doutrina se a audiência prévia se reporta, então, num direito fundamental.
A maioria da doutrina é de opinião de que a preterição de audiência prévia constitui um vício procedimental. O vício de procedimento diz respeito a situações em que um trâmite, ato ou diligência preparatória nada teve lugar ou que, tendo lugar, padece de ilegalidades objetivas relativamente ao sujeito que o praticou, à forma seguida ou ao procedimento a que obedeceu a sua realização. Não concerne à substância do ato. A consequência destes vícios é a anulabilidade do ato final, a não ser que alguma das previsões constantes do artigo 163.o/5 do CPA, se verifiquem, caso esse em que se pode afastar o efeito anulatório do ato.
Os Professores Vasco Pereira da Silva e Sérvulo Correia, sustentam que o direito de audiência prévia é, em si mesmo, um direito fundamental atípico, em qualquer procedimento administrativo, devendo ser-lhe reconhecida esta natureza. Quando violado, de acordo com esta tese, determinaria a nulidade do ato administrativo final, nos termos dos artigos 161.o e 162.o do CPA, por estar previsto no artigo 267.o/5 da CRP.
Entende, contudo, o Professor Mário Aroso de Almeida, que este preceito diz respeito à "estrutura da Administração", conforme a sua epígrafe, não decorrendo dele qualquer direito expresso à audiência prévia. Este Professor, sustenta que, no artigo 269.o/3 da CRP, consagrou o legislador o direito de "audiência e defesa", no âmbito do procedimento disciplinar, sendo que, neste caso (e apenas se se tratar de procedimentos disciplinares ou sancionatórios), a preterição desse trâmite constitui ofensa do conteúdo essencial do direito fundamental, provocando a nulidade do ato final (artigo 161.o/2/d) do CPA). Neste sentido, não se pode aplicar o artigo 163.o/5 do CPA a estes casos.
Deste modo, e de acordo com a doutrina do Professor Mário Aroso de Almeida, o ato administrativo em questão padece de outro vício, que levaria à sua anulabilidade, nos termos do artigo 163.o do CPA.
Dever de fundamentação
De acordo com o Professor Freitas do Amaral, o dever de fundamentação pode ser definido como a "enunciação explícita das razões que levaram o seu autor a praticar esse ato ou a dotá-lo de certo conteúdo". Os Professores Freitas do Amaral e Aroso de Almeida sustentam que a fundamentação é um requisito de forma (artigo 152.o do CPA), afirmando este último que, a sua inobservância (por falta, ininteligibilidade, incongruência ou insuficiência da fundamentação), constitui um vício de forma, que gera a anulabilidade do ato final, pelo artigo 163.o/1 do CPA.
Adianta ainda que, se se tratar, não de um vício de forma, mas de se averiguar se o que foi declarado corresponde à realidade ou não, isso releva no que toca à vertente substantiva do ato, no que se prende com os seus fundamentos, gerando um vício de substância, sendo também anulável nos termos do artigo 163.o, por falta de pressupostos.
No entanto, há ainda outra percepção em relação às consequências que o não cumprimento do dever de fundamentação pode acarretar. No artigo 268.o/3 da CRP, está consagrado o dever de fundamentação "expressa e acessível" do ato administrativo. Partindo do pressuposto de que, quando nos deparamos com um dever, por regra, corresponde-lhe um direito, do mesmo preceito se retira o direito à fundamentação. Apesar deste direito não estar previsto, existe uma cláusula aberta de direitos fundamentais, a partir da qual se pode construir a sua existência.
Há ainda quem sustente que, violado o dever de fundamentar o ato, se torna impossível ao particular impugnar o ato em causa junto da Administração ou dos Tribunais competentes, conforme previsto no artigo 163.o/2 do CPA. Isto deve-se ao facto de que, sem uma "fundamentação expressa e acessível", o particular visado não pode compreender a decisão e, por consequência, exercer o seu direito fundamental de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.o da CRP, na vertente da tutela efetiva. Assim, a violação deste direito, levaria também à nulidade do ato, nos termos do artigo 161/1/d) do CPA, por violação do conteúdo essencial de um direito fundamental.
Neste caso, aplica-se a exceção prevista no artigo 152.o/2 do CPA, uma vez que, não obstante os seus inegáveis efeitos externos, se trata de uma ordem emitida por um superior hierárquico a um órgão subalterno.
Considerações finais
O Ministério do Estado e das Finanças não teve em consideração que o ato que praticou implicava efeitos externos na esfera jurídica dos concursados, não o submetendo ao regime jurídico e ao procedimento previstos no Código de Procedimento Administrativo. Deste modo, apesar de a natureza do ato afastar, conforme o exposto, o dever de fundamentação, não se afigura que, neste caso, se possa deixar de observar totalmente o procedimento administrativo, nas suas diversas fases, nomeadamente a devida notificação dos interessados no procedimento e a sua audiência.
O ato padece de um vício que leva à sua nulidade e outro que determinaria a sua anulabilidade, mas, dado que o vício mais gravoso consome o vício menos gravoso, penso que o ato praticado deveria ter sido declarado nulo, nos termos dos artigos 161.o e seguintes do CPA.
Bibliografia
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Realizado por Luísa de Moura Coutinho Félix da Costa
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