Comentário ao Acórdão do STA de 9 de Novembro de 2022, proc. nº0242/22.8 - o dever de fundamentação dos atos administrativos

28-05-2023

Descritores: Lista de devedores; falta de fundamentação; efeitos invalidantes.

Sumário: "A", o particular, é notificado por despacho de que o Chefe do Serviço de Finanças de Pombal negou o seu pedido para não ter o seu nome incluído numa lista de devedores na internet. "A" procurou reclamar o sucedido com fim a pedir a anulação do seu despacho com base na sua alegada ilegalidade formal. Efetivamente, o Ministério Público emite nova sentença que anula o ato inicial. A Autoridade Tributária recorre desta esta decisão. O recurso é negado pelo Supremo Tribunal Administrativo.

Resumo do acórdão

Para poupar o leitor à leitura dos detalhes menos importantes do caso, pouco ou nada relevantes para a análise procedimental, sendo estes de uma leitura mais extensa, oferece-se a seguinte - e breve - exposição apenas dos factos em causa:

1.º "A" é notificado do despacho emitido pela entidade competente que indefere a sua pretensão.

2.º "A" faz uma reclamação para o Tribunal Administrativo competente, com o pedido de este proceder à anulação do despacho com base em ilegalidade formal.

3.º A reclamação é admitida, sendo emitido um parecer do Ministério Público e consequente sentença que anula o ato reclamado com base na falta de fundamentação.

4.º A Autoridade Tributária recorre a esta anulação do despacho, enumerando os motivos da reclamação não ser, a seu ver, sustentada na sua argumentação dado que "o Reclamante não invocou nenhuma das situações previstas na lei suscetíveis de obstar à sua inclusão na referida lista dos devedores.".

5.º A Fazenda Pública (AT) alega ainda que o único fundamento potencialmente relevante ao despacho de reversão - mencionado no facto 3.º - seria a existência de contencioso adequado a discutir a exigibilidade da dívida, ao invés da invocada falta de dever de fundamentação.

6.º A AT considera que o reclamante ("A") está totalmente ciente das questões em causa e que de tal modo não há vícios quanto à alegada falta de fundamentação.

7.º A AT invoca que, ainda que estivéssemos perante situação de existência da mencionada falta de fundamentação - não o reconhecendo de modo algum -, o vício seria sanável, segundo o princípio do aproveitamento do ato.

8.º A AT descredibiliza ainda a menção de alguma jurisprudência por parte do reclamante a titulo de argumentação por apenas se vincular nos termos do princípio da legalidade.

9.º Mais ainda, reforça e refere claramente a AT que "os autos contêm todos os elementos necessários para a prolação de uma decisão de mérito, quer se considere que o despacho reclamado padece do vício de falta de fundamentação e não pode ser aproveitado, quer se considere que o despacho reclamado é válido, pelo que, com o devido respeito, nunca o mesmo deveria ter sido anulado com base no vício de falta de fundamentação.", procedendo à enumeração da legislação violada.

10.º O Recorrido contra-alega que a "fundamentação da sentença recorrida é totalmente correcta, não tendo a FP qualquer razão na crítica dirigida." e ainda que "o despacho de indeferimento e a informação na qual aquele se acobertou não sustentou a decisão em qualquer fundamentação jurídica, nem apreciou os fundamentos do requerimento que lhe foi dirigido pelo ora recorrido.".

11.º O Recorrido acrescenta que há "incumprimento da formalidade prevista no artigo 60.º, n.º 7 da LGT, que se revela, no caso, essencial, o que torna inaplicável o princípio do aproveitamento do ato administrativo.", alegando que "(…) apenas nas situações em que não se possam suscitar quaisquer dúvidas sobre a irrelevância do exercício do direito de audiência sobre o conteúdo decisório do ato pode ser efetuada a aplicação daquele princípio"(Acórdão STA processo n.º 877/09, de 30 de março de 2011).

12.º "O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal Administrativo emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.", mantendo-se o efeito da sentença emitida a favor de "A", reclamante inicial (e recorrido), com votação favorável por unanimidade.

De Direito:

a) a falta de fundamentação:

Este acórdão gira em torno da questão da falta de fundamentação. Ora, no procedimento administrativo, o dever de fundamentação (152ºe 153º do CPA + 266º e 268º3 da CRP) é equivalente à justificação da decisão, que consta da quinta fase do procedimento administrativo. Esta fase garante que os particulares são informados e que conhecem em concreto o motivo da atuação administrativa em causa.

Neste mesmo sentido, o que se visa proteger, com esta figura, é o princípio da transparência, a par de servir de garantia de justificação da atuação administrativa. Para tanto, existem dois pressupostos:

  • É um dever da Administração justificar o motivo do seu percurso decisório, ou seja, fazer uma viagem pela lógica que leva um facto a outro, através de uma justificação. A fundamentação permite analisar os passos para conhecer, numa relação causa-efeito, o que potencia um dado ato. Ora, este dever pode, de forma muito simplista, resumir-se à apresentação da justificação que permite perceber os pressupostos de um caso e a sua decisão.
  • É uma garantia dos cidadãos, que vem de braço dado com o princípio da transparência, obrigando a Administração a exibir o processo para se poder chegar a um nexo lógico entre os pressupostos e a decisão. Trata-se, portanto, de uma oportunidade que surge para que o cidadão médio possa verificar a coerência da atuação em causa, inteirado dos factos.

A fundamentação tem de respeitar três requisitos (153ºCPA): ser adequada, clara e coerente. Estas características imprescindíveis da fundamentação vão todas na mesma linha de pensamento, a de permitir que o que está a ser comunicado passe devidamente do emissor ao recetor. Para tanto, a forma de o fazer terá de ser suficientemente bem elaborada para o cidadão lhe encontrar sentido, lógica para fácil compreensão e clara, para que qualquer um compreenda. Nesta temática, tem a jurisprudência vindo a considerar um ato justificado, se for possível que um Homem médio possa ficar ciente e consciente do sentido e das razões que o justificam. Não se procura conhecer todos os motivos e detalhes, mas apenas a matéria imprescindível ao órgão administrativo para que este tenha tomado dada decisão.

Deste modo, a falta de fundamentação tem como consequência, enquanto direito constitucionalmente consagrado, e análogo aos "direitos liberdades e garantias" comportar o caráter de vício formal, por mostrar a preterição de formalidade essencial. Ora, nesta situação, é de se considerar estar perante a violação de um direito fundamental, causador do desvalor da nulidade (161º2 d) e 162º do CPA), o que instaura ineficácia desde o primeiro momento. Já quanto aos casos em que a fundamentação não concerne atos administrativos lesivos de posições jurídicas ativas dos cidadãos, a sua preterição gera apenas anulabilidade. A anulabilidade é a sanção geral para os vícios de validade dos atos administrativos, sendo a nulidade uma exceção interdita aos casos previstos na lei (161º 2 do CPA). Assim, a maioria da doutrina - incluindo os Professores Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida -, tal como a jurisprudência, consideram que a forma de invalidade associada à falta de fundamentação é a anulabilidade (163º1 CPA).

O Professor Diogo Freitas do Amaral considera que não há natureza nem de direito fundamental nem de garantia de direitos fundamentais. Com um olhar muito diferente, interpretam os Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira, que consideram haver um dever de fundamentar, de forma a garantir determinados direitos fundamentais. De todo e qualquer modo, os últimos dois nomes consideram que não existe uma autonomização do dever de fundamentar, enquanto direito fundamental.

Para o acórdão em questão temos em consideração que a fundamentação é um conceito algo relativo, que surge com diferentes níveis de exigência. Todavia, o que releva aqui é que a lei pretende que o destinatário do ato compreenda a razão do decidido, mesmo que a fundamentação possa aparecer de diversas formas e em diferentes graus de minúcia.


b) o princípio do aproveitamento do ato

Este princípio vê o seu regime jurídico consagrado no artigo 163.º, n.º 5 do CPA. Trata-se de um princípio recente, fruto da influência do ordenamento alemão no português, que deu frutos no CPA de 2015. O que o disposto pretende exprimir é que, havendo alguma ilegalidade, seja em virtude um vício formal ou procedimental, que geraria invalidade, existe uma previsão do afastar do efeito anulatório desde que o vício não vá afetar a decisão final.

O procedimento destina-se à execução da vontade dos órgãos da Administração, sendo visto pela doutrina maioritária, como havendo uma autonomia subalternizada do procedimento em relação às formas de atuação administrativas. Tanto o Professor Regente como o Professor Marcelo Rebelo de Sousa discordam, considerando que este entendimento coloca em causa a importância do procedimento, por considerar que as invalidades das decisões administrativas podem ser ultrapassadas.


c) direito à audiência prévia

Pautada pela mesma razão de ser do dever de fundamentação, a audiência previa (121º e 122º CPA) preza a "participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito." (267º5 CRP).

Ao procurar conhecer os entendimentos mais relevantes da doutrina, dois surgem com maior destaque:

  • O Professor Vasco Pereira da Silva entende que o direito à audiência prévia é um direito fundamental, pois trata-se de um reconhecimento de uma posição de vantagem do particular perante a administração, como se prevê no artigo 267º 5 da CRP. A base para suportar a tese de audiência prévia ser um direito fundamental verifica-se no artigo 16º CRP, que prevê uma cláusula aberta ou de não tipicidade de direitos fundamentais. Segundo esta teoria, a violação do direito à audiência prévia desencadearia a nulidade, nos termos do artigo 161º2 d) CPA.
  • No lado oposto, o Professor Diogo Freitas do Amaral recusa esta classificação, considerando que a audiência prévia comporta um valor e importância de um direito meramente legal. O Supremo Tribunal Administrativo apoia e reitera este entendimento segundo a jurisprudência criada.

Ora, observa-se que este tema não é claro nem unânime na doutrina pelo que a visão do Professor Regente não tem reconhecimento na jurisprudência.

Quanto ao caso concreto, alega-se: "(…)a douta sentença em crise que o despacho reclamado fez "tábua rasa" dos factos novos invocados pelo Reclamante no seu direito de audição prévia, o que constitui vício de forma, por deficiência de fundamentação, e determina a anulação do despacho reclamado(…)".


Conclusões

Em suma, o presente acórdão expõe, procedimentalmente, a abordagem de três grandes temas do Direito Administrativo português: o dever de fundamentação (e/ou a falta do mesmo), o famoso princípio do aproveitamento do ato administrativo e a ainda o momento da audiência prévia. As alegações sob análise, permitem ao leitor conceber em termos realistas, os limites de cada um destes temas que são objeto do nosso estudo no âmbito da unidade curricular de Direito Administrativo II.


Bibliografia e webgrafia:


Publicação elaborada pela aluna Carlota de Almeida Pulido Valente Monjardino, número 64415

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