Da Hierarquia Administrativa: Os seus Contornos e a Sujeição ao Poder de Direcção

15-12-2022

Filipe Rodrigues dos Santos


   Ao longo dos séculos, a Administração Pública tem revelado várias faces e contornos que, não obstante a natural mudança decorrente das alterações sociais de fundo, mantém determinadas vértebras com uma posição bem definida naquilo que é a sua coluna vertebral.

   Uma dessas vértebras a que metaforicamente nos referimos é, com efeito, a hierarquia administrativa. Alvo das mais diversificadas dissertações académicas - como adiante analisaremos -, a hierarquia administrativa é, não só um dos conceitos mais fundamentais no seio do Direito Administrativo, como um verdadeiro pilar, sem o qual teríamos uma Administração Pública mergulhada no caos e que sobre si se dissolveria.

   Urge, a título introdutório, tecer uma definição orientadora sobre o conceito de hierarquia.

   Conforme nos orienta FREITAS DO AMARAL [1], não são escassas na doutrina portuguesa as definições para este conceito. Destarte, MARCELLO CAETANO expõe-nos que: "a hierarquia dos serviços consiste no seu ordenamento em unidades que compreendem subunidades de um ou mais graus e podem agrupar-se em grandes unidades, escalonando-se os poderes dos respectivos chefes de modo a assegurar a harmonia de cada conjunto. (...) A esta hierarquia de serviços corresponde a hierarquia das respectivas chefias. Há em cada departamento um chefe superior, coadjuvado por chefes subalternos de vários graus pelos quais estão repartidas tarefas e responsabilidades proporcionalmente ao escalão em que se acham colocados. (...) O poder típico da superioridade na ordem hierárquica é o poder de direcção [...]".

   Por seu turno, em sentido semelhante, CUNHA VALENTE orienta que a hierarquia: é "o conjunto de órgãos administrativos de competências diferenciadas, mas com atribuições comuns, ligados por um vínculo de subordinação que se revela no agente superior pelo poder de direcção e no subalterno pelo dever de obediência".

   Na linha de FREITAS DO AMARAL, também nós consideramos importante alertar para o facto de que não se trata aqui de hierarquia lato sensu, isto é, não falamos aqui da comummente chamada "hierarquia dos tribunais", na medida em que não existe entre eles uma verdadeira hierarquia, nem em "hierarquia de postos/cargos" ou na "hierarquia política", em que não há uma verdadeira relação hierárquica entre o Primeiro-Ministro e os seus Ministros e entre estes e os Secretários e Sub-Secretários de Estado. E por que motivo não há, neste último exemplo, uma verdadeira hierarquia? A resposta afigura-se simples: porquanto os Ministros não estão (juridicamente) sujeitos a nenhum poder de direcção nem dever de obediência face ao Primeiro-Ministro, bem como também não o estão em relação a um qualquer poder de supervisão nem poder disciplinar. Nesta matéria estão apenas sujeitos à responsabilidade política, que não nos releva particularmente para este ensaio.

   Tecida esta purificação conceptual, podemos notar desde já a existência de duas figuras visceralmente relacionadas com a hierarquia: o poder de direcção e o dever de obediência. Destarte, FREITAS DO AMARAL define "hierarquia" como: "o modelo de organização administrativa vertical, constituído por dois ou mais órgãos e agentes com atribuições comuns, ligados por um vínculo jurídico que confere ao superior o poder de direcção e impõe ao subalterno o dever de obediência.".

   Nestes termos, AMARAL aponta-nos ainda três idiossincrasias que constituem o modelo hierárquico, a saber:

   i) Existência de um vínculo entre dois ou mais órgãos e agentes administrativos: apartando o carácter prima facie óbvio desta questão, é imperativa a existência de pelo menos dois órgãos ou agentes para que se estabeleça a relação hierárquica;

   ii) Comunidade de atribuições entre os elementos da hierarquia: tanto o subalterno como o superior devem actuar para a prossecução de atribuições comuns;

   iii) Vínculo jurídico constituído pelo poder de direcção e pelo dever de obediência: é a chamada "relação hierárquica" que, não sendo uma relação jurídica em sentido real, é um vínculo jurídico típico, que se estabelece entre o superior e o subalterno.

   Cumpre-nos agora atentar na questão essencial deste ensaio: os poderes do superior - o poder de direcção - e a respectiva sujeição do subalterno - o dever de obediência -, bem como os limites inerentes a este dever. Deverá o subalterno obedecer como um autómato mecanizado ou terá a sua vontade alguma relevância no que a esta questão concerne?

   É o que veremos seguidamente.

   Ora, o superior, no seio da relação hierárquica, está dotado de três poderes essenciais: o de direcção, de supervisão e o disciplinar. Em termos lógicos, é seguro afirmar que os poderes de supervisão e disciplinares são, em parte, decorrentes do primeiro, na medida em que o sedimentam: de que serve, com efeito, a um superior o poder de dar ordens, se não estão estas dotadas de coercibilidade e ele não está munido de poder observar o cumprimento das mesmas e punir o subalterno em caso de incumprimento?

   Vejamos: o poder de direcção define-se, segundo AMARAL, como a faculdade de o superior dar ordens e instruções, em matéria de serviço, ao subalterno. Este poder presume-se sempre, não carecendo de previsão legal expressa [2].

   Em contrapeso, surge o dever de obediência por parte do subalterno. AMARAL define-o como a obrigação de o subalterno cumprir as ordens e instruções dos seus legítimos superior hierárquicos, dadas em objecto de serviço e sob a forma legal. Tal resulta da Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho, a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGTFP), artigo 73.º/8, que determina que: "O dever de obediência consiste em acatar e cumprir as ordens dos legítimos superiores hierárquicos, dadas em objeto de serviço e com a forma legal." [3]. Assim, a ordem deve ser dada por um superior legítimo, em matéria de serviço e deve revestir a forma legalmente prevista.

   Atentemos agora na questão nuclear: uma ordem dada por um superior legítimo, em matéria de serviço, que revista a forma legalmente prevista, mas cujo cumprimento implique a prática, por parte do subalterno, de um acto ilegal ou ilícito, deve ser cumprida?

   Note-se: a questão terá uma solução diferente, dependendo da corrente de pensamento jurídico que optamos por seguir. Optando por considerar a posição do subalterno como um mero autómato mecanizado, cuja vontade e consciência ético-moral não importa para o Direito Administrativo, temos a corrente hierárquica. Neste pensamento, alega-se que a mera possibilidade de o subalterno não cumprir, em qualquer caso, representaria sempre uma subversão da própria ideia de hierarquia. Nestes termos, o subalterno apenas poderia, em casos extremos, invocar o seu direito de respeitosa representação junto do seu superior. Ainda assim, jamais esta invocação teria um efeito liberatório do dever de obediência.

   Em sentido divergente, a corrente legalista defende que não existe dever de obediência perante uma ordem ilegal. Esta corrente tem, por sua vez, várias interpretações. De forma mais restritiva, defende-se que o dever de obediência cessa se a ordem implicar a prática de um crime. Outra interpretação intermédia expõe que a cessação deste dever terá lugar se a ordem for inequivocamente ilegal, por ser contrária à letra e/ou ao espírito da lei. Por fim, uma interpretação mais extensiva desta corrente defende que não há, em caso algum, dever de obediência a uma ordem ilegal: acima do superior está a lei e é à última a quem o subalterno - e, em bom rigor, qualquer cidadão - deve verdadeira obediência.

   Até onde deverá o subalterno ir para garantir que está em conformidade com a vontade do seu superior e, noutro patamar, em conformidade com a lei?

   Analisemos o que nos diz a nossa lei: a Constituição da República Portuguesa (CRP), no seu artigo 266.º/2 determina que "Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé́". Por outro lado, encontramos ainda no seu artigo 271.º/3 que: "Cessa o dever de obediência sempre que o cumprimento das ordens ou instruções implique a prática de qualquer crime".

   Ora, não nos parece difícil compreender que, mediante uma interpretação sistemática, tudo se parece encaminhar para uma solução legalista moderada: em caso de mera divergência de interpretação quanto à ilegalidade, deve o subalterno obedecer; se, no entanto, a ordem for manifestamente ilegal, cessa o dever de obediência.

   Pergunta-se agora: ainda que a interpretação atinente à legalidade da ordem divirja entre o subalterno e o seu superior, a ordem pode efectivamente ser ilegal. Nesses casos, sendo que o subalterno a cumpre, Quid Juris?

   Sobre isto pronuncia-se PAULO OTERO [4] inquirindo se o cumprimento nestes termos não resultará eventualmente numa excepção ao próprio princípio da legalidade e responde negativamente, dizendo que é resultante da lei ser legal o cumprimento de uma ordem ilegal. AMARAL, por seu turno, discorda desta posição, afirmando que este é, com efeito, uma excepção ao princípio da legalidade, sendo, contudo, legitimado pela própria Constituição.

   Aqui seguimos a posição de PAULO OTERO, porquanto a existência de uma "legalidade especial, circunscrita ao âmbito interno da actividade administrativa" parece-nos mais conforme ao próprio espírito constitucional, que abrindo excepções para a desobediência, criou, com efeito, esta zona especial onde se torna legal o cumprimento de ordens ilegais em caso de divergência interpretativa. Destarte, não consideramos procedente a alteração de jure condendo proposta por AMARAL, porquanto consideramos que o efeito poderia ser o inverso: em vez de especificar ainda mais em que termos o subalterno pode - ou deve - desobedecer, dar-lhe-ia um poder de julgar cada ordem que lhe fosse dada, desvirtuando o próprio conceito de hierarquia. Não sendo a condução ao caos administrativo o caminho mais clemente para o Direito Administrativo, consideramos que esta zona de legalidade especial defendida por PAULO OTERO e por nós seguida deve ser, de todo modo, mantida.

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Referências:

[1] AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo I, 4.ª Edição (2016), pp. 665-666.

[2] AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo I, 4.ª Edição (2016), pp. 674.

[3] in:https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.phpnid=2171&tabela=leis&so_miolo=

[4] OTERO, Paulo, Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativa, (1992), pp. 184-187.


Filipe Rodrigues dos Santos | 66314

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