Das Funções de um Ministro: O (Vale-)Tudo é Admissível?
Filipe Rodrigues dos Santos
Noticiou-nos, no dia 10 de Setembro de 2021, o jornal Observador [1], um episódio curioso - e, no mínimo, caricato -: a, na altura, Ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública, Alexandra Leitão, terá entrado na Loja do Cidadão das Laranjeiras, sita em Lisboa, "[...] aos berros, contra os funcionários [...]", por estar um cidadão à espera para ser atendido há cerca de 11 horas.
Ora, os dirigentes sindicais, em representação dos funcionários da Loja do Cidadão sobredita, pronunciaram-se publicamente sobre o sucedido, acusando a Ministra de ter tido uma atitude que "[...] envergonharia qualquer ditador[...]".
Terá realmente tido?
Procuramos neste ensaio analisar de um ponto de vista jurídico esta situação. De ressalvar que, para os efeitos referidos, não trataremos de tecer considerações ético-morais de como devem as funções de quem de direito ser desempenhadas. Objectivamos, isso sim, analisar de uma óptica estritamente jurídica a validade da ordem dada pela ex-Ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública.
Note-se: é sabido que, nos termos do artigo 182.º da Constituição da República Portuguesa (doravante "CRP"), o Governo é o órgão superior da Administração Pública. Como tal, nos termos do artigo 199.º, alínea d) da CRP, compete ao Governo o exercício dos poderes de direcção, superintendência e tutela sobre a administração directa. Ora, cumpre-nos primeiramente compreender em que modalidade da Administração se encontra a Loja do Cidadão e, nesse seguimento, consultar a Lei de Organização e Funcionamento do XXII Governo Constitucional, que era, à data, a lei responsável por atribuir as competências a esta Ministra.
A Loja do Cidadão das Laranjeiras é gerida pela Agência para a Modernização Administrativa, I.P. (AMA), bem como todas as outras Lojas do Cidadão patentes em território nacional. Torna-se, pois, imperativo compreender os poderes que a Senhora Ministra podia - ou não - exercer sobre a AMA. FREITAS DO AMARAL [2] define esta Agência como um serviço de gestão administrativa. Por sua vez, os serviços de gestão administrativa correspondem aos "serviços da administração central do Estado que, integrados num ou noutro ministério, desempenham funções administrativas de gestão que interessam a todos os departamentos da administração central do Estado [...]".
Destarte, atentemos no artigo 21.º/3, alínea a), do Decreto-Lei n.º 169-B/2019, de 03 de Dezembro, que aprova o regime de organização e funcionamento do XXII Governo Constitucional, que define que a Ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública exerce a superintendência sobre esta agência. Ora, a superintendência é entendida o poder de emanar directrizes, estabelecer metas ou definir objectivos para a entidade (lato sensu) sujeita à superintendência.
O que nos parece ter sido empreendido pela Ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública foi uma derradeira ordem perante os funcionários. Note-se que terá dito expressamente aos funcionários da Loja do Cidadão das Laranjeiras que o cidadão em causa deveria ser "atendido imediatamente".
Não nos parece, pois, nestes termos, que esta acção se inclua no âmbito daquilo que é o poder de superintendência e tutela, mas parece ser próprio do poder de direcção, que a Senhora Ministra não tinha por força do próprio Decreto-Lei n.º 169-B/2019, de 03 de Dezembro.
É mencionada, na mesma notícia, dada por outro órgão de comunicação social [3], a existência de um despacho emanado pelo Ministério da Modernização do Estado e da Administração Pública, que estabeleceria "[...] as orientações para o atendimento sem marcação prévia nas Lojas de Cidadão, designadamente para que este seja compatibilizado com o atendimento previamente agendado, o que pressupõe a distribuição de senhas diárias para atendimento espontâneo[...]". Ora, não parece suscitar dúvidas a legalidade deste despacho, que se encontra perfeitamente enquadrado na competência da Ministra relativamente à AMA. Questão diferente é a da Ministra adentrar uma Loja do Cidadão e verdadeiramente lançar ordens sobre os seus funcionários, que, como já sobredito, não nos parece compatível com os seus poderes sobre a AMA.
Por estes motivos, consideramos que ainda que tenha sido praticado sob preocupação com o bom funcionamento dos serviços públicos que - recorde-se - enfrentavam os constrangimentos provocados pela pandemia da Covid-19, o acto da Ministra extravasou aquilo que eram as suas competências sobre a AMA e, subsequentemente, os funcionários da Loja do Cidadão da Laranjeiras, porquanto não vale-tudo para garantir o cumprimento das directrizes por si emanadas. A ser assim, o poder de superintendência, seria, pois, em última instância, uma figura em nada diferente do poder de direcção, já que a ele estaria sempre subjacente a capacidade de emanar ordens a qualquer momento, revestindo o acto de preocupação com o cumprimento das directrizes previamente emanadas. Ora, isto seria, tão-só, uma desvirtuação nítida da própria instituição da superintendência como a conhecemos.
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Referências
[2] AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo I, 4.ª Edição (2016), pp. 267
Filipe Rodrigues dos Santos | 66314