Decisão do Tribunal em Relação à Delegação de Poderes
No seguimento da decisão do Ac. TCAS 02/11/2022 pr. nº 1020/09.5BELSB, seguir-se-á uma análise do referido acórdão, dando enfase à questão da delegação de poderes da Câmara Municipal de Mafra, ao respetivo Presidente, sendo que o a decisão do Tribunal foi a negação do provimento ao recurso, com consequente confirmação da sentença recorrida.
Passando à análise: A intentou uma ação contra o Município de Mafra, tendente à declaração de nulidade ou anulação do despacho de 2009/01/29, do Presidente da Câmara de Mafra, que indeferiu o pedido de prorrogação do prazo para o exercício de direito de audição, e a condenação da Entidade Demandada à prática de ato devido, consubstanciado na aprovação do pedido de licenciamento da operação de loteamento, apresentado a 2007/08/01, emitindo, em consequência, a respetiva licença.
No que diz respeito à nulidade do despacho impugnado, por violação do caso julgado, o réu afirmou que o despacho impugnado é nulo, ex vi do disposto no artigo 133º/2, h) do CPA pois, ao indeferir a pretensão urbanística do recorrente, viola clara e frontalmente o caso julgado, pelo incumprimento da audição prévia nos termos dos artigos 100º e ss do CPA. Neste sentido, o tribunal vem fundamentar, dizendo que foi indeferido o pedido de prorrogação do prazo para o exercício da audiência prévia no âmbito do processo camarário no LP 18/2007; não padece do vício de violação no caso julgado, nem há vício de dever de fundamentação de facto e de direito, nem violação da audiência prévia, uma vez que o recorrente foi notificado para o exercício desse direito, e só no último dia do prazo solicitou uma prorrogação do prazo da audiência prévia.
No que diz respeito à questão da violação da lei, o réu afirma que o despacho do Presidente da Câmara Municipal de Mafra ofendeu o conteúdo essencial dos direitos fundamentais de propriedade privada e de iniciativa económica privada do recorrente, consagrados nos artigos 61º e 62º da CRP, pois indeferiu a pretensão formulada sem se basear em qualquer norma convocável, ao abrigo do artigo 133º/2, d) CPA; afirmou também que o despacho impugnado veio também violar frontalmente o artigo 24º RJUE, uma vez que as razões invocadas para indeferir a pretensão do ora recorrente não se enquadram em qualquer dos fundamentos taxativos indicados naquele normativo que não foi sequer invocado, tendo como base os artigos 266º/2 CRP e 3º CPA. Para além disso, ao abrigo do artigo 64º/5, a) da LAL, competia à Câmara Municipal aprovar os projetos relativos a concessão de licenças de loteamento, inexistindo qualquer prévio ato expresso de delegação de poderes, devidamente publicado, que permitisse o exercício de tais competências pelo Presidente da Câmara de Mafra, e que nunca poderia ter eficácia retroativa (arts. 64º, 65º LAL; arts. 37º e 142º CPA). O tribunal vem fundamentar que o Presidente da Câmara de Mafra exarou uma competência que lhe foi delegada por deliberação da Câmara Municipal, em 2005/11/04, sendo que, o Presidente, em despacho de 2009/01/29, indeferiu a prorrogação do prazo da audiência prévia, o que fez com que o recorrente não tivesse exercido o seu direito; enfatiza ainda que da notificação constavam todos os elementos para o exercício desse mesmo direito, sendo possível, por via da notificação, ao recorrente, alcançá-la, uma vez que, ao contrário do entendimento do recorrente, o tribunal vem dizer que a audiência prévia não constitui uma formalidade essencial antes da decisão do indeferimento de prorrogação do prazo para o exercício da mesma.
Relativamente a outras ilegalidades, o réu afirma a violação dos princípios constitucionais de segurança das situações jurídicas e da proteção da confiança do recorrente, integrantes do princípio do Estado de Direito Democrático (arts. 2º, 9º, 61º, 62º, 266º CRP), sendo que o tribunal discordou, afirmando-se que não houve qualquer violação dos princípios de boa fé, ponderação de interesses, proporcionalidade, igualdade, segurança das situações jurídicas, legalidade, confiança, e respeito.
Nesta ordem de ideias, a delegação de poderes é uma matéria que está integrada na problemática da concentração ou desconcentração dos sistemas de organização administrativa, e tem como fundo a organização vertical dos serviços públicos, consistindo na ausência de distribuição vertical de competência entre os diversos graus ou escalões de hierarquia, tal como referiu o Prof. Freitas do Amaral.
O artigo 267º CRP admite tanto a descentralização, como a desconcentração, sendo que isto se traduz no facto de que, à multiplicidade de pessoas coletivas públicas existentes (descentralização) acrescenta-se, dentro de cada uma, a repartição de competências entre órgãos superiores e subalternos, tal como dizem os autores Freitas do Amaral, Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos.
Os autores referidos integram a delegação de poderes no fenómeno de desconcentração, sendo que este fenómeno carece de permissão legal expressa, como está explicitado no artigo 44º/1 CPA, que faz referência à necessidade de lei habilitante, o que implica a existência de um órgão delegante e de um órgão delegado.
Para além disso, no artigo 47º CPA estão ainda explícitos outros requisitos: especificação dos poderes delegados; a sujeição à publicação nos termos do artigo 159º do mesmo diploma, sob pena de ineficácia.
É importante fazer aqui referência à interessante questão: será que, após a delegação de competências, o delegante pode continuar a exercê-las? O Prof. Paulo Otero e o Prof. Marcello Caetano dizem que sim, uma vez que a competência não foi perdida (aqui, a Câmara Municipal continuaria com a competência e poderia exercê-la, bem como o Presidente da Câmara Municipal). Pelo contrário, o Prof. Freitas do Amaral defende que não, uma vez que, a partir do momento em que a competência está delegada, o facto de poder exercê-las iria tornar irrelevante a figura da avocação (consagrada no artigo 49º/2 CPA, e está relacionada com o facto de o delegante voltar a chamar para si as decisões das questões) - neste caso, apenas o Presidente da Câmara Municipal poderia exercer a competência que lhe foi delegada.
No acórdão presente, o réu faz referência ao facto de que o Presidente da Câmara de Mafra não tinha competência para indeferir o pedido de licenciamento. De facto, nos termos do artigo 33º/1, alínea Y) da Lei 75/2013, a Câmara Municipal tem como competência exercer o controlo prévio nos domínios de construção e reconstrução de edifícios. No seguimento deste raciocínio, é importante referenciar o artigo 34º do mesmo diploma - a alínea Y) do artigo 33º não consta nas competências que não podem ser delegadas ao Presidente da Câmara Municipal e, assim, ao abrigo do nº1 do artigo 34º da LAL, então o Presidente da Câmara Municipal pode, efetivamente, exercer os poderes que lhe foram delegados, mediante o cumprimento dos atos de delegação de poderes.
Neste sentido, cumpre fazer referência aos pressupostos da delegação de competências: ao abrigo do artigo 44º/1 CPA, é necessária a existência de uma lei habilitante; a delegação de poderes deve também especificar os poderes delegados (47º/º1, 1ª parte), mencionar a norma atributiva do poder delegado (47º/1, 2ª parte); devem também ser publicados, nos termos do artigo 159º CPA (no DRE ou na publicação oficial da Câmara Municipal), sob pena de ineficácia.
Consequentemente, ao abrigo do artigo 48º/1 CPA, o órgão delegado deve mencionar que está a atuar em função de uma delegação de poderes; não o fazendo, o interessado não pode ser prejudicado, apesar de a validade do ato não ser afetada. Aqui acaba por se levantar a questão seguinte: será que o Presidente da Câmara Municipal de Mafra efetivamente referiu que estava a agir mediante uma delegação de poderes? Ou será que o facto de não ter referido levou a que o réu tivesse dúvidas relativamente à sua competência?
A título pessoal, creio que o Presidente da Câmara não referiu que a sua competência era consequência de um ato de delegação de poderes, o que levantou dúvidas no réu. Assim, penso que é importante levantar a seguinte questão: não será uma contradição ao artigo 48º/2 CPA, indeferir a licença do réu? Parece que sim, uma vez que não pode prosseguir com o loteamento. Por outro lado, a validade do ato mantém-se, daí entender que o indeferimento se mantenha.
Quanto aos direitos fundamentais que se disseram violados, foram referidos: o direito de livre iniciativa privada, consagrado no artigo 61º CRP, o direito de propriedade privada, consagrado no artigo 62º CRP, e também outros princípios que o réu considera que considera que constam no princípio do Estado de Direito Democrático (2º, 9º e 266º CRP).
O direito à livre iniciativa privada é, nos termos do artigo 61º CRP o que garante a todos o direito à livre constituição de cooperativas, e o direito de autogestão. O direito de propriedade privada está consagrado no artigo 62º CRP e diz que o direito à propriedade privada deve ser garantido a todos. O princípio do Estado de Direito Democrático encontra-se consagrado ao longo da lei fundamental, nomeadamente nos artigos 2º, 9º e 266º, sendo que tem como base ''(...) a soberania popular, o pluralismo de expressão, e a organização política democrática, no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa''.
Neste âmbito, cumpre fazer o confronto entre todos estes princípios e a competência da Câmara Municipal que, neste caso, foi delegada ao Presidente da Câmara Municipal de Mafra: não é racional afirmar que o indeferimento de uma licença de loteamento seja violador de princípios fundamentais. O que está em causa não é o loteamento, nem a colocação de um entrave à livre iniciativa económica, ou à propriedade privada, está em causa o indeferimento de uma licença de loteamento num local específico que, segundo a apreciação da Câmara Municipal não deve ser loteado. Alterar esta decisão, sem qualquer fundamento de inconstitucionalidade, ineficácia do ato de delegação de poderes, ou por prática de algum ato nulo, daria origem a um ato de usurpação de poderes, isto é, a uma violação do princípio de separação de poderes.
Em suma, e com tudo o referido ao longo desta análise, cabe concordar e enfatizar a correta decisão e respetiva fundamentação do Tribunal.
Jurisprudência consultada:
Rita Santos, 2ºB, subturma 15, nº 64694