Notícia: Miguel Alves, o Contrato-Promessa e a Câmara Municipal de Caminha
A divulgação, pela comunicação social nacional, da existência de um contrato-promessa para a Construção de um Centro de Exposições Transfronteiriço (CET), em Caminha, levou à demissão de Miguel Alves do cargo de Secretário Adjunto do Primeiro Ministro.
Em causa, estará o pagamento antecipado de uma verba de 369 mil euros da Câmara Municipal de Caminha - à data governada por Miguel Alves - à empresa Greenfield Endogenous.
Ora, tratando-se de uma questão que envolve problemas administrativos, uma vez que os factos envolvem uma Autarquia Local, ou seja, uma pessoa coletiva pública inserida na administração autónoma do Estado, que prossegue fins próprios (autoadministra-se) e apenas está sujeita aos poderes de tutela do Governo (art.199º/alínea d, CRP), é relevante focarmo-nos na questão puramente administrativa ao nível da atuação da Autarquia Local.
Tendo em conta o art.5º/2 da Lei n. º75/2013, são órgãos representativos da pessoa coletiva pública município, a Assembleia Municipal (órgão deliberativo) e a Câmara Municipal (órgão executivo), na qual - neste último - se integra o Presidente da Câmara, que possui poderes próprios.
Voltando agora ao cerne da nossa discussão sobre Miguel Alves e o contrato-promessa, podemos questionar se teria necessidade, o antigo Presidente da Câmara Municipal de Caminha, de apresentar o contrato-promessa à Assembleia Municipal?
De acordo com o art.239º/1 da CRP, as Assembleias Municipais são o órgão deliberativo do Município, uma espécie de Parlamento da Autarquia Local, que profere decisões em matéria de orçamentos, planos e outras realidades.
Procedendo à articulação do nº1 (alínea i) do artigo 25º com o nº3 do mesmo artigo da Lei nº. 75/2013, a Assembleia Municipal não pode alterar as propostas apresentadas pela Câmara Municipal, mas pode emitir autorizações relativas à compra de bens imóveis de valor superior a 1000 vezes à Remuneração Mínima Mensal Garantida (RMMG) de acordo com essa proposta.
Tratando-se de uma competência do Presidente da Câmara, ao abrigo do artigo 35º/2/alínea h da Lei n.º 75/2013[1], parece não haver necessidade da apresentação da proposta à deliberação da Assembleia Municipal nem à deliberação da Câmara Municipal, em setembro de 2020, do contrato-promessa de arrendamento do CET, que implicou a autarquia caminhense numa despesa de 369 mil euros.
Posto isto, a apresentação da proposta à Assembleia Municipal, parece pretender corresponsabilizar os deputados municipais pela decisão que tinha sido tomada pelo próprio Presidente ao abrigo do artigo 35º/2/alínea h. Aliás, Miguel Alves, sentia-se cómodo na apresentação desta proposta à Assembleia Municipal uma vez que - tendo maioria absoluta na Assembleia Municipal - esta seria aprovada sem dificuldade, o que se veio a verificar.
Não tendo a empresa cumprido o contrato levantou-se o problema da possibilidade de o município reaver os 369 mil euros adiantados à empresa Greenfield Endogenous. Já com Miguel Alves fora da presidência da autarquia caminhense e empossado Secretário-Adjunto do Primeiro-Ministro, o caso ganha exposição mediática tendo suscitado a intervenção do Ministério Público. Levantou-se então uma questão jurídica: tem a Assembleia Municipal competência para apresentar, o que podemos chamar de uma proposta de recomendação, à Câmara Municipal para que esta possa intervir no processo-crime?
A resposta a esta indagação pode ser descortinada articulando o Regimento da Assembleia Municipal de Caminha (concretamente o seu artigo 25º) com a tão nossa conhecida Lei nº75/2013 (precisamente o artigo 25º).
À luz do artigo 25º/2/alínea k da Lei nº75/2013, a Assembleia Municipal tem competência de apreciação e fiscalização, e, portanto, pode pronunciar-se e deliberar sobre qualquer assunto que aspire ao prosseguimento das atribuições do município[2], o que, articulando, com o também artigo 25º/1/alínea f do Regimento da Assembleia Municipal de Caminha, os seus membros têm competência para apresentar propostas[3]. Logo, há assim competência, por parte dos seus membros, para recomendar à Câmara Municipal a intervenção no processo-crime de forma a que a autarquia possa reaver o dinheiro adiantado à Greenfield Endogenous.
Agora, caso a suposta empresa detida por Ricardo Moutinho, conhecida como "Greenfield Endogenous" venha afirmar que não possui capacidade para devolver o montante adiantado pela Câmara Municipal, pode a autarquia pedir a devolução dos 369 mil euros aos que forem constituídos arguidos entre os quais Miguel Alves?
Podemos afirmar que, caso venha a ser emitido despacho de acusação, pode o município caminhense intentar ressarcir-se por via dos artigos 68º a 74º do Código de Processo Penal, onde pode constituir-se como assistente no processo penal e daí, a própria Assembleia Municipal, na sessão extraordinária do dia 15 de novembro de 2022 ter apresentado uma proposta de recomendação para o Município se constituir assistente no processo crime.
Cabe agora, para concluir, questionar - do ponto de vista administrativo - que tipo de negócio é este?
Numa perspetiva leiga, estamos perante um mero contrato de arrendamento celebrado entre uma Autarquia Local e um ente-privado. Contudo, esta leitura pode parece-nos dúbia uma vez que, a Autarquia Local, realiza este contrato de arrendamento sem estar a exercer poderes públicos.
Embora, na Assembleia Municipal do dia 25 de setembro de 2020, onde a Assembleia Municipal deliberou aprovar este negócio do CET, Miguel Alves, tenha recorrido à presença de dois professores de Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Prof. Doutor Licínio Lopes e Prof. Doutor Marcelo Delgado), para reforçar que a proposta que era de extrema competência da Câmara Municipal, no entanto, ao ser apresentada à Assembleia Municipal, estaria a querer dar uma demonstração de democracia.
Aliás, o contrato foi projetado, do ponto de vista jurídico, como um modelo inovador (que se opunha aos modelos clássicos frustrados que tinham sido praticados por empresas municipais no país) não comprometendo, por isso, a Câmara Municipal nem as gerações futuras. Este era um projeto para as gerações usufruírem e permitia, ao futuro Presidente da Câmara Municipal, demonstrar uma tomada de decisão democrática e transparente porque comprometia a Assembleia Municipal.
O contrato-promessa, na opinião de Miguel Alves, não comprometia a Câmara Municipal de Caminha quer no plano legal, quer no plano contratual pelo que não seria um problema para o orçamento público.
O único objetivo deste contrato seria captar investimento privado para o município. As obrigações do município seriam a conservação do pavilhão, o pagamento dos funcionários e o pagamento da renda.
Na realidade, poderemos estar perante uma fraude ao espírito da lei mas, sobre isso, conversaremos depois.
[1] "Compete ainda ao presidente da câmara municipal: praticar os atos necessários à administração corrente do património do município e à sua conservação"
[2] "Pronunciar-se e deliberar sobre os assuntos que visem a prossecução das atribuições do município"
[3] "A palavra é concedida aos membros da assembleia designadamente para apresentar recomendações, propostas, moções, protestos e contraprotestos"
Legislação Utilizada
- Código de Procedimento Administrativo
- Constituição da República Portuguesa
- Lei nº.75º/2013, de 12 de setembro
- Regimento da Assembleia Municipal de Caminha
Webgrafia
https://www.youtube.com/watch?v=eqD8-IRp5nY (Assembleia Municipal de Caminha; 25/09/2020)
Inês Ribeiro; nº66289; Subturma 15; 2ºB