Notícia: “Novo nó da A1 de Vila Franca destrói casa onde nasceu Afonso de Albuquerque”

12-12-2022

Rita Matos Pardal


 Notícia publicada por JORGE TALIXA, a 6 de janeiro de 2000, no Jornal Público, com título "Novo nó da A1 de Vila Franca destrói casa onde nasceu Afonso de Albuquerque" [1]. Importa, no contexto da disciplina de Direito Administrativo I, avaliar o cumprimento dos princípios da prossecução do interesse público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos, da proporcionalidade e da boa-fé.

 Em resumo, a notícia sob judice aborda a demolição de edifícios de uma velha quinta onde terá nascido o antigo vice-rei da Índia Afonso de Albuquerque, pela operadora de infraestruturas de transporte em Portugal, Brisa, para a construção de um nó de acesso à A1 a sul de Vila Franca de Xira. A Brisa alegou que o espaço veio à sua posse no âmbito de "uma negociação amigável", mas a proprietária dos imóveis garantiu que não houve qualquer acordo. O Ippar (Instituto do Património Arquitetónico) acabou por remeter a participação pela proprietária da quinta à Câmara de Vila Franca, que encarregou uma sua arqueóloga de fazer um levantamento da situação. Zita Seabra, vereadora da Cultura, apresentou, posteriormente, o problema em reunião camarária, referindo que a operadora de infraestruturas, ao fazer o acesso, não respeitou aspetos patrimoniais daquela quinta, que não estava classificada, mas tinha uma grande tradição em Vila Franca. A autarca, com base no parecer dos serviços, sugeriu a responsabilidade da Brisa por aquilo que foi demolido.

 As disposições Código do Procedimento Administrativo (CPA) são aplicáveis à conduta de quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, adotada no exercício de poderes públicos ou regulada de modo específico por disposições de direito administrativo - artigo 2º/1 CPA, sobre o seu âmbito de aplicação. Sabemos que a Brisa reveste a personalidade jurídica de uma pessoa coletiva privada que prossegue fins públicos: administração e manutenção de rodovias, ferrovias e aeroportos; daí que possa assumir-se que se rege pelas regras de Direito Administrativo e, consequentemente, pelas disposições do CPA.


1. Matéria de facto

  • Princípio da prossecução do interesse público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos e princípio da boa administração

 Prevê o artigo 4º CPA o princípio da prossecução do interesse público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos: "Compete aos órgãos da Administração Pública prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos." Cabe definir o conceito de interesse público: interesse geral de uma determinada comunidade, ligado à satisfação das necessidades coletivas desta [2].

 Este princípio rege-se segundos alguns corolários. Relevante corolário para a análise do caso é o da obrigatoriedade da realização do interesse público, que exige da Administração a adoção, em relação a cada caso concreto, as melhores soluções possíveis, do ponto de vista administrativo, financeiro e técnico - dever geral de boa administração. A fixação da lei dos interesses a prosseguir pelos órgãos e agentes administrativos não garante a boa decisão administrativa. Assim, o princípio da prossecução do interesse público, constitucionalmente previsto, mormente no artigo 266º/1 CRP (ver parágrafo seguinte), implica a existência de um dever, pelas entidades administrativas, de boa administração, prosseguindo o bem comum da forma considerada mais eficiente. Tem sido discutida, na doutrina portuguesa administrativa, a relevância jurídica deste dever; segundo o Professor DIOGO FREITAS DO AMARAL, o princípio da boa administração existe enquanto dever jurídico, podendo a sua violação resultar em consequências jurídicas, ainda que distintas daquelas que estão inerentes à violação de deveres jurídicos perfeitos [3].

 O sentido do texto constitucional do artigo 266º/1 CRP é o de zelar pelo respeito dos direitos subjetivos e interesses legalmente previstos dos cidadãos. Fundamentalmente, a prossecução do interesse público não deve ser o único critério de ação administrativa, devendo simultaneamente ser respeitados os direitos dos particulares [4]. O Professor VASCO PEREIRA DA SILVA, em discordância com o Professor DIOGO FREITAS DO AMARAL, considera não existirem dúvidas de que o texto constitucional equipara direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos, tratando-os como situações jurídico-materiais dos indivíduos. Direitos subjetivos e interesses subjetivos devem ser reconduzidos à categoria unitária dos direitos subjetivos, sendo, no ordenamento jurídico português, duas formas de designar a posição jurídico-subjetiva dos privados perante a Administração Pública. A titularidade de direitos subjetivos deve ter, portanto, como consequência, a atribuição ao particular da possibilidade de atuação no procedimento para a defesa preventiva dos seus direitos perante a Administração.

 À luz da pequena enunciação teórica, temos que, no ato de prossecução de um fim público coletivo - a construção do nó de acesso à A1 a sul de Vila Franca de Xira -, a entidade jurídico-privada envolvida no exercício de uma atividade administrativa pública, Brisa, deveria considerar a violação dos direitos subjetivos de uma particular que, enquanto proprietária da quinta destruída, era responsável por consentir ou não a demolição dos edifícios da propriedade. Embora apenas os interesses definidos por lei constituam motivos de caráter determinante para a ação das entidades administrativas, estas devem ter em conta o dever de boa administração, cujo cumprimento possibilita a distinção entre boas e más decisões.

 A notícia revela a opinião da proprietária: "A Brisa, para fazer um acesso à A1, tendo à escolha três locais onde o poderia fazer, escolheu a Quinta do Paraíso para destruir. (...) Cheguei à minha propriedade e vi-a toda esventrada, esbandalhada, arrasada. Não resisti e chorei. Não perdoo a este país e seus governantes por estes métodos que só podem ser classificados de irresponsáveis e parciais." Deduzindo, portanto, o não consentimento da proprietária da quinta, podemos concluir pela violação de um seu direito subjetivo e, consequentemente, pela violação da disposição dos artigos 4º CPA e 266º/1 CRP, sobre o princípio da prossecução do interesse público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos.

  • Princípio da proporcionalidade

 "Na prossecução do interesse público, a Administração Pública deve adotar os comportamentos adequados aos fins prosseguidos.", lê-se no artigo 7º/1 CPA. O principio da proporcionalidade constitui uma manifestação essencial do princípio do Estado de Direito (artigo 2º CRP), estando presente a ideia de que, num Estado democrático de Direito, as decisões tomadas pelas entidades administrativas públicas não devem exceder o estritamente necessário para a realização do interesse público [5].

 Da definição do princípio, deduzem-se três dimensões essenciais: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade stricto sensu. Os atos praticados pela Administração devem ajustar-se ao fim que se pretende atingir, pressupondo-se que o ato seja aquele que lese em menor medida os direitos e interesses dos particulares, numa perspetiva de minimizar os danos. O requisito da proporcionalidade stricto sensu (ou do equilíbrio, tomando a distinção destas dimensões pelo Professor DIOGO FREITAS DO AMARAL) retira-se do número 2 do mesmo artigo 7º CPA: "As decisões da Administração que colidam com direitos subjetivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afetar essas posições na medida do necessário e em termos proporcionais aos objetivos a realizar." Procura avaliar-se, portanto, segundo VITALINO CANAS, "se o ato praticado, na medida em que implica uma escolha valorativa, (...) é válido à luz de parâmetros materiais". Assim, o principal objetivo do princípio da proporcionalidade nada mais é do que proibir excessos não razoáveis, por meio da aferição de compatibilidade entre os meios e os fins da atuação administrativa, a fim de se evitar restrições abusivas ou até mesmo desnecessárias.

 Com base na enunciação do princípio em análise, e das suas dimensões, releva avaliar se o ato da entidade Brisa se mostrou proporcional, aquando da prossecução do interesse público:

  • Os atos praticados pela Administração devem ajustar-se ao fim que se pretende atingir: realmente, a operadora de infraestruturas, Brisa, agiu de acordo com o fim pretendido - perpetuar uma ligação entre a autoestrada A1 e Vila Franca de Xira.
  • Pressupõe-se que o ato seja aquele que lese em menor medida os direitos e interesses dos particulares, numa perspetiva de minimizar os danos: pergunta-se - podia a operadora de infraestruturas de transporte ter construído o acesso de Vila Franca à A1 sem a demolição da quinta onde terá nascido o antigo vice-rei da Índia Afonso de Albuquerque, assumindo que os terrenos em volta se encontravam vazios? Realmente, o ato administrativo não foi planeado de forma a minimizar os danos e a proteger os interesses da proprietária da quinta.
  • "As decisões da Administração que colidam com direitos subjetivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afetar essas posições na medida do necessário e em termos proporcionais aos objetivos a realizar": quanto ao terceiro requisito, entende-se, mais uma vez, a empresa Brisa não ter agido conforme ao princípio da proporcionalidade. Até que ponto a necessidade coletiva pública da construção do nó de acesso à A1 se poderia sobrepor à manutenção da quinta demolida, com valor cultural e patrimonial? O ato não se mostra proporcional ao fim pretendido.
  • Princípio da boa-fé

 O principio da boa-fé assume-se como um dos princípios basilares do ordenamento jurídico português. Enuncia o CPA, no seu artigo 10º: "No exercício da atividade administrativa, e em todas as suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa-fé." Desta forma, o princípio da boa-fé não atua apenas no exercício de um direito, mas na própria constituição das relações jurídicas, levando à necessidade de uma conduta leal e honesta, tanto nas relações interpessoais, como nas relações entre os particulares e as várias manifestações de vontade do Estado, em qualquer das suas funções (político/administrativa, legislativa ou judicial).

  Segundo o Professor VASCO PEREIRA DA SILVA, este princípio assume uma importante relevância, não só ética, como prática, no que compete à salvaguarda dos interesses e direitos legítimos da sociedade e dos interesses da coletividade em geral, ajudando não somente na resolução de controvérsias jurídicas, como também na defesa da ética e moralidade. A sua concretização é possibilitada através de dois subprincípios: o princípio da tutela da confiança legítima e o princípio da materialidade subjacente.

 Importa, agora, avaliar a correta aplicação deste princípio pela entidade Brisa. Assim, vale analisar o conceito de boa-fé: no contexto de Direito Contratual, e em remissão para o Código Civil alemão, temos que as partes devem agir com "lealdade e confiança recíprocas" - note-se o já referido princípio da tutela da confiança legítima, havendo expectativas relativamente à atuação da parte, acreditando e esperando que esta não atuará de forma a prejudicar a outra parte (o princípio da confiança encontra-se também tutelado no artigo 10º/2 CPA). A proprietária da quinta demolida, contactada pela operadora de infraestruturas de transporte, confirma não ter aceite a demolição de edifícios que, embora em ruínas e estado decadente, eram fonte de cultura, pela suspeita de ter lá nascido o antigo vice-rei da Índia, Afonso de Albuquerque. Foi depositada, portanto, a confiança e lealdade pela não destruição da quinta para construção do nó de acesso à A1 Norte, esperando-se atuação em conforme com a boa-fé. No entanto, a operado não agiu em conformidade com o princípio da boa-fé, incumprindo os princípio da confiança e transparência (a CRP não contém uma menção expressa a este princípio enquanto princípio fundamental da Administração Pública: de facto, os artigos 266º e 267º CRP, que condensam, respetivamente, os princípios fundamentais funcionais e organizatórios da Administração, não aludem diretamente à transparência; tal menção existe, contudo, em diversos diplomas de Direito Administrativo - como a Lei de Enquadramento Orçamental - e no novo CPA, aludindo à ideia de transparência nos seus artigos 14º (princípios aplicáveis à administração eletrónica) e 201º (procedimentos pré-contratuais).


2. Decisão

 Dando expressão ao disposto nos artigos 22º CRP e 16º CPA, prevê-se que "A Administração Pública responde, nos termos da lei, pelos danos causados no exercício da sua atividade."

 Tem-se que, numa noção aproximativa, a responsabilidade civil corresponde à obrigação "de indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação" ilícita do direito de outrem, com dolo ou mera culpa (artigo 483º/1 CC). A responsabilidade da Administração consiste, por conseguinte, na obrigação jurídica, que recai sobre qualquer pessoa coletiva pública, de indemnizar os danos que tiver causado aos particulares, no exercício da função administrativa ou no exercício de atividades de gestão privada. Embora apresente algumas particularidades, a responsabilidade civil decorrente da atuação da Administração Pública não é, em termos de essência, diferente da figura jurídica regulada pelo Direito Privado: uma e outra podem ser fonte autónoma de relações jurídicas de natureza obrigacional - a obrigação de indemnizar [6].

 Ainda que a Administração não tenha praticado qualquer ato ilegal, incorre, ainda assim, no dever de indemnizar prejuízos emergentes da sua atuação, como acontece com os atos ilícitos que imponham aos particulares formas de sacrifício especial dos seus direitos. Com efeito, exige-se que o exercício da função administrativa se faça de acordo com o texto constitucional e as disposições legislativas. A tutela jurídica primária dos cidadãos, implica quer a eliminação dos atos de autoridade indevidamente praticados, quer a práticas de atos da mesma natureza indevidamente omitidos [7].

 Nos termos do artigo 1º/5 do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, "as disposições que (...) regulam a responsabilidade das pessoas coletivas de Direito Público, (...) por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas coletivas de Direito Privado, (...) por ações ou omissões que adotem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de Direito Administrativo." Assim, conclui-se pelo dever de indemnizar, uma vez a Brisa ter provocado danos aquando da realização do interesse público, por ato administrativo.


3. Bibliografia

[1] "Novo nó da A1 de Vila Franca destrói casa onde nasceu Afonso de Albuquerque", in Jornal Público (publico.pt)

[2] FREITAS DO AMARAL, Diogo, in Curso de Direito Administrativo, Vol. II, página 33, 4.ª edição, 2018 e CAUPERS, João, in Introdução ao Direito Administrativo, página 85, 10.ª edição, 2009

[3] FREITAS DO AMARAL, Diogo, in Curso de Direito Administrativo, Vol. II, páginas 35 a 38, 4.ª edição, 2018

[4] FREITAS DO AMARAL, Diogo, in Curso de Direito Administrativo, Vol. II, páginas 55 e 56, 4.ª edição, 2018

[5] FREITAS DO AMARAL, Diogo, in Curso de Direito Administrativo, Vol. II, página 112, 4.ª edição, 2018

[6] FREITAS DO AMARAL, Diogo, in Curso de Direito Administrativo, Vol. II, páginas 564 e 571, 4.ª edição, 2018

[7] FREITAS DO AMARAL, Diogo, in Curso de Direito Administrativo, Vol. II, páginas 566 e 567, 4.ª edição, 2018

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