O advento do Direito Administrativo e a denegação da responsabilidade no âmbito da justiça administrativa

15-12-2022

Estudada a lição de Vasco Pereira da Silva, o Direito Administrativo gozou de um nascimento infeliz. Assumindo uma figura inicial grotesca, adversa às ideias liberais e ao constitucionalismo moderno que fracassadamente a circunvalaram, o Direito Administrativo assume relevância no período do Estado mínimo, do "Estado-guarda-norturno".

A época a que remontamos consubstancia o Constitucionalismo Liberal, o pós-Revolução, de 1789, na conhecida proclamação dos direitos do indivíduo e da consequente prevalência destes perante o Estado, que deverá acima de tudo salvaguardar-los (os cidadãos passam a ser titulares de direitos subjetivos públicos), e da declaração do importantíssimo princípio da separação de poderes. 

Deste último nasce, contrariamente ao expectado e considerando as grandes mudanças nos outros campos estaduais e sociais, a decisão por um Contencioso Administrativo "privativo", a consagração de uma Administração capaz de decidir a sua própria justiça: uma Administração autossuficiente no julgamento da sua atividade e funcionamento. 

De resto, a Administração deveria ser solta em paz para resolver sobre a validade da sua própria atuação e, como fora frisado por Maurice Hauriou, o Contencioso Administrativo seria agora e então, uma derradeira "introspecção administrativa".

Conhece-se então a efígie do administrador-juiz, um retrato quase tão medonho como a Administração propriamente dita: uma Administração agressiva, que se reduzia ao poder policial e às Forças Armadas, com o fundamento de que a Administração deveria ser afastada dos demais assuntos soberanos, por fim a evitar um Estado hegemónico ou totalitarizante.

É, de facto, uma contraposição interessante relativamente à Administração atual, uma Administração "prestadora", no quadro do Estado pós-Social ou "infraestrutural", no sentido de prover às infraestruturas necessárias para que a mesma e os privados possam exercer a função administrativa.

O Prof. Vasco Pereira da Silva remata este primeiro ponto com o primeiro "trauma" que conheceu as suas sequelas até finais do século XIX e inícios do século XX, e em Portugal até 1976, sendo que só aí, os tribunais administrativos portugueses conheceram a sua integração no poder judicial, pois até então, e recorrendo às palavras de Marcello Caetano, os tribunais administrativos seriam órgãos do poder administrativo no exercício da função jurisdicional, e portanto órgãos da Administração Pública.

O segundo trauma advém deste Contencioso restrito, referimo-nos então à criação de um Direito Administrativo "traumatizado" por uma jurisdição enredada . Um Direito que iniciara o seu percurso com a recusa de uma indemnização a uma criança gravemente lesada num acidente e que só a Administração por ele poderia responder.

A origem do Direito Administrativo: O Acórdão Blanco

Agnès Blanco brincava numa zona segura em Bordéus quando sofrera um terrível acidente em virtude do descarrilamento de uma vagão, pertencente a uma empresa pública de manufactura de tabaco. A primeira tentativa em lograr uma indemnização pelos danos causados valeu-se da jurisdição comum, mas o Tribunal de Bordéus pronunciou-se pela sua não competência, sustentando o envolvimento de uma entidade administrativa, pelo que a sua autoridade se destinaria apenas às relações entre particulares. Aditou-se à não competência a ausência de norma aplicável, uma vez que o Código napoleónico regulava apenas as relações entre particulares tidos como iguais, não podendo, jamais, a Administração ser considerada ao nível de um particular. Transtornados com o acidente e incorformados com o veredicto, os pais da criança de apenas cinco anos de idade recorreram à jurisdição administrativa local: O Presidente da Câmara.

O Presidente da Câmara exibia então as vestes do administrador-juiz, duas vertentes confundidas em um único titular. Como primeira instância do contencioso administrativo, pronunciou-se pela falta de competência para decidir, pois a questão do caso identificava-se com um facto fortuito, involuntário, acidental, e não com um ato administrativo, pelo que a sua competência incidiria somente no apuramento da legalidade deste último. Reafirmou ainda que não seria sequer possível fazer um enquadramento legal do caso, não havendo norma aplicável, à luz do forte positivismo que marcara este período da História.

Depois desta triste sentença, os pais de Agnès incorreram no tribunal de conflitos. Perante o conflito negativo de jurisdições que se declararam incompetentes, o Tribunal, no Acórdão Blanco, reconhece a jurisdição ao contencioso administrativo, cabendo à função administrativa resolver os casos de responsabilidade civil da administração, afastando as normas do direito civil e estando sujeita às suas próprias regras. Todavia, a conclusão final caiu novamente na ausência de norma aplicável, remetendo ao próprio Direito a criação de normas administrativas futuras aptas à integração daquele caso.

Subscrevendo a interpretação do Prof. Vasco Pereira da Silva, não poderia haver pior começo para um ramo do Direito, cuja autonomia serve de justificação suficiente e razoável para negar uma indemnização a uma criança golpeada para toda a vida e cruelmente deixada aos resultados da letargia de uma Administração irresponsável.

Enquadramento e algumas conclusões sobre o Direito Administrativo moderno francês: O modelo napoleónico 

Napoleão Bonaparte não fora só um grande líder militar, fora também um administrador genial, tendo a França, sob sua direção, todo um conjunto de leis e instituições que conduziram ao alargamento da intervenção do Estado, que como veremos mais à frente, e nas palavras do Prof. Diogo Freitas do Amaral, seria então um intervencionismo controlado porque subordinado ao princípio da legalidade, mas concomitantemente um intervencionismo lato.

A administração central francesa organizava-se em cinco ministérios (guerra, justiça, finanças, negócios estrangeiros e interior), cada um deles dividido em direções e repartições. Surge o Conseil d´État, a instância suprema de controlo jurisdicional da Administração. Os funcionários da administration centrale são organizados à luz do princípio da hierarquia, e o território francês é divido em cerca de 80 départements chefiados pelos préfets, nomeados pelo governo. Os municípios cederam da sua autonomia administrativa e financeira em favor do poder de direção do maire, também nomeado pelo governo,

Mais importante afigura-se a questão tratada pelo Prof. Diogo Freitas do Amaral da sujeição da Administração aos tribunais administrativos: o autor contrapõe o sistema administrativo francês "executivo" de ampla influência na Europa continental, ao modelo insular britânico da "administração judiciária", resultando o primeiro de uma interpretação bizarra do princípio da separação de poderes, como referimos na parte inicial do post baseada nos ensinamentos de Vasco Pereira da Silva.

Esta interpretação altamente contraditória pressupunha que o poder executivo não poderia imiscuir-se nos assuntos da competência dos tribunais, tal como o poder judicial também não estaria apto a interferir no funcionamento da Administração Pública: consagrou-se a total independência destes poderes, conferindo à Administração um direito à sua própria jurisdição, um "privilégio de foro", concretizado na criação de tribunais administrativos que, como vimos, não eram verdadeiros tribunais mas órgãos da Administração. Os tribunais administrativos foram incumbidos da fiscalização da legalidade dos atos (voluntários) da Administração, do julgamento dos contratos e da sua responsabilidade civil, encetando na forma de órgão consultivo.

A derrota militar e política de Napoleão Bonaparte não pôs termo ao modelo administrativo por si criado, verificando-se antes a sua expansão por diversos países europeus, numa "(...) ditadura de manutenção das conquistas da Revolução (...)", como frisa Freitas do Amaral.

O legado francês: O privilégio da execução prévia 

O modelo administrativo francês do Liberalismo consagrou uma Administração dotada de poderes de autoridade de que os particulares não dispunham. O direito administrativo francês conferiu à Administração Pública um conjunto de poderes "exorbitantes" sobre os cidadãos, em nada comparáveis com o direito civil Este privilégio de foro concretizou-se na faculdade da Administração de executar as duas decisões por autoridade própria, isto é, de imediato e pelos meios coativos de que dispunha, sem a participação do poder judicial para conferir ou determinar a legitimidade dessa mesma coação.

Conclusão da experiência traumática do Direito Administrativo

Do primeiro trauma resultou uma Administração aberrante no tocante à concretização do princípio da separação de poderes. Deste primeiro germinou um Direito Administrativo que conceberia uma Administração que viria a autoconsiderar-se num patamar superior que a excluía da regulação na esfera das suas relações com os particulares, desenrolando-se o segundo trauma: a sentença da não responsabilização, da denegação da justiça a uma criança de cinco anos de idade, coerente com a Administração "agressiva" dos tempos modernos.

Bibliografia

SILVA, Vasco Pereira da, EM BUSCA DO ATO ADMINISTRATIVO PERDIDO, Almedina, 1996

AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, volume I, 4.ª edição, Livraria Almedina, Coimbra, 2015

Raquel Antunes Duarte


Crie o seu site grátis! Este site foi criado com a Webnode. Crie o seu gratuitamente agora! Comece agora