O aproveitamento do acto - um não princípio
Beatriz Napoleão Bastos, n.º 66313
A anulabilidade é a regra geral no que respeita à invalidade dos actos administrativo, segundo o artigo 163.º, número 1, do Código do Procedimento Administrativo. Significa esta regra geral que um acto que contrarie a legalidade ou nela não tenha fundamento, é (salvo, naturalmente, os casos aos quais a lei associa a outro desvalor) anulável.
Enquanto a nulidade de um acto se traduz na não produção de efeitos jurídicos, independentemente da respectiva declaração de nulidade (que, no fundo, é um reconhecimento de um facto), a anulabilidade opera de maneira diferente, não impedindo de origem a sua eficácia. Se um acto é anulável, "está sujeito ao risco de vir a ser anulado"[1] (R. 1), momento em que deixa de produzir efeitos jurídicos e em que se dá a extinção dos já produzidos. Os actos podem, assim, ser impugnados no prazo de 1 ano, seja por meio de uma anulação administrativa como por meio de uma sentença de anulação – o que significa que tanto a própria Administração como os Tribunais Administrativos têm a competência anulatória. A anulação visa a reposição da legalidade.
Faz sentido aplicar aqui o raciocínio da diferenciação entre validade e eficácia: o acto é válido ou inválido consoante seja conforme ou desconforme à legalidade; é eficaz ou ineficaz consoante produza ou não efeitos jurídicos. São duas matérias diferentes. Interligadas, mas não propriamente dependentes e consequentes entre si. Pode haver validade e ineficácia (veja-se o caso de todo o procedimento e competência terem sido respeitados, mas o acto carecer de publicação e, portanto, não produzir efeitos). O inverso pode igualmente ocorrer, e cumpre identificar duas manifestações deste fenómeno que integram a temática em causa.
A primeira é essencialmente a já referida. Um acto inválido que seja anulável, no espaço temporal em que não foi anulado, produz efeitos jurídicos, ainda que os mesmos venham a ser extintos retroactivamente com a anulação.
A segunda é uma eventual prolongação da anterior, decorrente do artigo 163.º, número 5, do Código do Procedimento Administrativo. Este preceito admite que o efeito anulatório não se verifique se o acto viciado couber numa das três alíneas, a saber: a) se o seu conteúdo não possa ser outro por ser vinculado, ou se a apreciação do caso concreto permitir identificar apenas uma solução como legalmente possível; b) se o fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via; c) se se comprovar que, mesmo sem o vício, o acto teria sido indubitavelmente praticado com o mesmo conteúdo. Portanto, na aplicação deste preceito, estamos perante outra manifestação do dito fenómeno: invalidade e eficácia.
Como nos indica o Professor Mário Aroso de Almeida, as três hipóteses enumeradas nestas alíneas complementam-se, formulando um corpo de casos em que faz sentido não retroceder com o procedimento e com a decisão, por se enquadrarem no mecanismo do aproveitamento do acto.
O referido autor faz uma excursão pelas alíneas.
A segunda hipótese, alínea b.), aplica-se, como sugere a própria letra da lei, à violação de regras procedimentais ou formais cujo fim foi conseguido por outra via. Alude à degradação das formalidades essenciais em não essenciais. O Professor Luís Heleno Terrinha não adere a esta interpretação por considerar que o raciocínio da degradação e o juízo de essencialidade são falaciosos, na medida em que implicam que se considere ab initio a possibilidade de uma formalidade não ser essencial[2].
Já a primeira e a terceira, alíneas a.) e c.), aludem ao mecanismo do aproveitamento do acto, e aplicam-se tanto a vícios procedimentais e formais, como aos problemas de pressupostos e motivos. A primeira refere-se a situações de vinculação[3] (R. 3) que, por isso, implicariam que o acto fosse praticado novamente sem o vício. A terceira refere-se a situações de discricionariedade, isto é, «situações de exercício de poderes de valoração próprios da Administração em que seja evidente que o vício não influiu na decisão, por se demonstrar que o órgão administrativo teria praticado o mesmo ato se o vício não tivesse ocorrido»[4].
A aplicação deste regime não sana a anulabilidade: o legislador teve o cuidado de referir que "o efeito anulatório não se produz" nas referidas eventualidades, o que sugere que a invalidade é reconhecida e que a anulabilidade se conserva, sendo apenas afastado o risco de ser anulado e a consequente extinção dos efeitos jurídicos do acto e reposição da legalidade. É o paradoxo do acto anulável não anulável[5].
Note-se que o aproveitamento do acto administrativo é um mecanismo que se estende também aos actos nulos por meio das figuras da reforma e da conversão. Mas esta extensão não é o objecto da presente análise.
É particularmente curioso que a maioria da doutrina pareça evitar referir-se a um "princípio" do aproveitamento do acto, optando por omitir a expressão, ou no caso do Professor Luís Heleno Terrinha, optando por substituir a palavra por "mecanismo". Entendemos que esta constatação indicia uma noção do perigo da evolução do mecanismo para um princípio. O aproveitamento do acto, em bom rigor, é um agente erosivo do princípio da legalidade não só solidificado na jurisprudência, como consagrado pelo próprio bloco legal. O legislador, por um lado, regou e fertilizou o princípio da legalidade, nomeadamente quando acrescentou, e bem, a vinculação da Administração ao Direito e não apenas à lei formal. Em contrapartida, reduziu o seu âmbito de aplicação ao consagrar um conjunto de excepções que considerou um imperativo de outros princípios, nomeadamente o da boa administração, tanto na vertente de celeridade como na de economicidade. São imposições de desburocratização.
A questão aqui é que é de tamanha insegurança jurídica que a Administração Pública veja hipóteses de não cumprir com as tramitações impostas por lei, por saber que o acto será preservado. Há algum paralelismo na história do Direito Administrativo. A Administração era, no Estado Liberal, de cariz autoritário, e o particular era um súbdito, um objecto.
É certo que a perspectiva clássica via no procedimento administrativo um papel subordinado, e que hoje tem uma valoração própria. E é importante que tenha, na medida em que é competência da Administração concretizar o sentido das normas nas circunstâncias do caso concreto, na actividade administrativa.
Na medida em o intuito do aproveitamento do acto é salvaguardar a decisão administrativa viciada quando tenha um conteúdo perfeitamente semelhante ao da decisão administrativa que teria sido hipoteticamente tomada sem o vício, importa definir o critério para determinar os casos que se incluem neste pressuposto.
A doutrina responde a esta questão com dois critérios, consagrados pelo legislador nas alíneas a.) e c.) respectivamente. O primeiro é o da indisponibilidade jurídica de uma alternativa e exige que a decisão viciada não pudesse juridicamente ser outra (o que enquadra logicamente os actos vinculados). O segundo, já abrangente dos casos de discricionariedade, é o da indisponibilidade fáctica de uma alternativa e exige que o vício não tenha tido qualquer influência no conteúdo decisório do acto, ainda que este não fosse o único juridicamente admissível. «Para chegar a essa conclusão, cumprirá ao tribunal realizar um juízo de prognose póstuma, indagando da aptidão [...] do vício cometido para se projectar no sentido da decisão da Administração»[6].
O autor que defende que, como se deve presumir que as regras procedimentais podem sempre repercutir-se no sentido do resultado da decisão, então o método da indisponibilidade fáctica é imprudente. Este método, segundo o qual se averigua a causalidade entre o vício e a decisão, envolve um raciocínio demasiado frágil para aplicar a situações de discricionariedade.
Ora, concordamos com esta presunção: é importante considerar sempre que, à partida, as regras procedimentais podem sempre influenciar a decisão. Contudo, é exactamente esta a chave para discordar do restante entendimento. Veja-se: se, pelos motivos já expostos, a norma é de aplicação algo controversa e deve ter um carácter excepcional, então faz sentido impor um certo grau de dificuldade à Administração na tarefa de provar, sem margem para dúvidas[7], que a decisão seria a mesma independentemente do vício.
Cumpre ainda fazer uma observação no sentido da protecção do princípio da separação de poderes. Ora, como já visto, o acto de anular pode tomar a forma de sentença de anulação, se emanar dos tribunais administrativos, ou de anulação administrativa, caso emane da própria Administração Pública. O autor indica que o âmbito subjectivo do número 5 do artigo 163.º abrange tanto a Administração Pública como os Tribunais Administrativos, indicando, e bem, que os tribunais não podem ver restringida a competência anulatória e a Administração não. Contudo, é necessário ter em conta, para além do copo meio cheio, o copo meio vazio. O outro lado da mesma moeda. Vendo a Administração a sua competência anulatória limitada por ver aquelas situações salvaguardadas da anulação, então, na verdade, tem competência para se julgar a si própria, podendo ela própria fazer avançar os actos viciados que praticou. Esta situação coloca em causa, manifestamente, o princípio da separação de poderes. Esta objecção é reconhecida e prevista pelo autor, contudo defendemos que tem mais peso que o restante corpus. Talvez seja possível ver aqui um resquício dos traumas da infância do Direito Administrativo[8]. Na sua génese, a Administração julgava-se a si própria, na medida em que os tribunais administrativos faziam parte da Administração, e não da função jurisdicional. Faria sentido que esta competência lhe estivesse vedada.
Em suma, reconhece-se o crescente peso do princípio da boa administração e das necessidades de desburocratização, é importante que o mecanismo do aproveitamento do acto não ponha em causa o princípio da segurança jurídica e que não abra margem a uma Administração agressiva, de conotação já conhecida no passado.
[1] Cfr. Aroso de Almeida, Mário, Teoria Geral do Direito Administrativo. Coimbra: Almedina, 2012.
[2] «Um essencial que se pode transformar em não-essencial talvez não fosse tão essencial à partida.», Heleno Terrinha, Luís, "Procedimentalismo jurídico-administrativo e aproveitamento do acto, in Armando Gomes, Carla; Neves, Ana Fernanda; Serrão, Tiago (ed.), Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo – Volume II. Lisboa: AAFDL, p. 359.
[3] Sem prejuízo de não haver «atos totalmente vinculados, nem atos totalmente discricionários. Os atos administrativos são sempre o resultado de uma mistura ou combinação, em doses variadas, entre o exercício de poderes vinculados e o exercício de poderes discricionários.», in Freitas do Amaral, Diogo, Curso de Direito Administrativo – Volume II. Coimbra: Edições Almedina, S.A, 2018.
[4] Cfr. Aroso de Almeida, Mário, Teoria Geral do Direito Administrativo. Coimbra: Almedina, 2012.
[5] Heleno Terrinha, Luís, "Procedimentalismo jurídico-administrativo e aproveitamento do acto, in Armando Gomes, Carla; Neves, Ana Fernanda; Serrão, Tiago (ed.), Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo – Volume II. Lisboa: AAFDL, p. 341.
[6] Heleno Terrinha, Luís, "Procedimentalismo jurídico-administrativo e aproveitamento do acto, in Armando Gomes, Carla; Neves, Ana Fernanda; Serrão, Tiago (ed.), Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo – Volume II. Lisboa: AAFDL, p. 353.
[7] A expressão a negrito consta da própria letra do artigo 163.º, número 5, do Código do Procedimento Administrativo.
[8] Cfr. Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo. Coimbra: Almedina, 2016.
BIBLIOGRAFIA:
Aroso de Almeida, Mário, Teoria Geral do Direito Administrativo. Coimbra: Almedina, 2012.
Armando Gomes, Carla; Neves, Ana Fernanda; Serrão, Tiago (ed.), Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo – Volume II. Lisboa: AAFDL, 2018.
Freitas do Amaral, Diogo, Curso de Direito Administrativo – Volume II. Coimbra: Edições Almedina, S.A, 2018.
Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo. Coimbra: Almedina, 2016.