O DEVER DE OBEDIÊNCIA PERANTE NORMAS ILEGAIS
Depois de lidos os artigos 5º do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores Que Exercem Funções Públicas e 272º da Constituição da República Portuguesa, doravante LGTFP e CRP respetivamente, surge-nos a pergunta, fará sentido que o dever de obediência não se extinga assim que o subordinado se dê conta de que um certo comando ou ordem dado pelo seu superior hierárquico seja ilegal, mas não constitua um crime?
Para uma melhor compreensão da questão, cabe-nos fazer um breve enquadramento da mesma, começando por perceber a importância do poder de direção e respetivo dever de obediência na Administração Pública.
Existem dois principais tipos de relação jurídica na administração, as relações intersubjetivas ou externas, que se dão entre as pessoas coletivas que estejam envolvidas em atividades de interesse público e as relações interorgânicas, correspondentes àquelas que existem entre os órgãos da mesma pessoa coletiva.
Dentro deste relacionamento do tipo interno, encontramos a Hierarquia, que, segundo o professor Diogo Freitas do Amaral, pode ser descrita como "o modelo de organização administrativa vertical, constituído por dois ou mais órgãos e agentes com atribuições comuns, ligados por um vínculo jurídico que confere ao superior o poder de direção e impõe ao subalterno o dever de obediência", podemos concluir, então, que a Hierarquia se consubstancia numa relação em que uma das partes - o superior hierárquico - exerce um conjunto de poderes sob o seu subordinado, que lhe deve obediência.
São três os poderes jurídicos de que o superior dispõe para que sejam atingidos os objetivos e cumpridas as tarefas, o poder disciplinar, o poder de supervisão e, por fim, aquele que para este caso mais importa, o poder de direção, e que, para o professor Freitas do Amaral, se traduz na "faculdade de o superior dar ordens e instruções, em matéria de serviço, ao subalterno".
Cabe-nos agora estudar a solução que nos é dada pela lei.
Vejamos o artigo 5º do LGTFP, pelo qual percebemos estar excluída a responsabilidade disciplinar do trabalhador que atue no cumprimento de ordens ou instruções emanadas de legítimo superior hierárquico e em matéria de serviço, se, previamente, o trabalhador tenha reclamado ou exigido a sua transmissão ou confirmação por escrito, realçando-se ainda de que deve o trabalhador, ao cumprir este pressuposto, mencionar expressamente a ilegalidade, devendo ainda deixar por escrito os termos exatos da ordem ou instrução recebidas e da reclamação ou do pedido formulados, bem como a não satisfação destes, executando seguidamente a ordem ou instrução.
Também o artigo 271º da Crp menciona o pressuposto da transmissão ou confirmação por escrito.
Em resposta à questão do primeiro parágrafo, já muito discutida na doutrina, surgiram duas principais posições.
Naquela correspondente à doutrina minoritária, que apresenta uma resposta negativa à pergunta e na qual se inclui o professor Paulo Veiga Moura, é sustentada a ideia de que o funcionário ou trabalhador não deve cumprir a ordem se, depois de a verificar, concluir a sua ilegalidade. Esta posição pressupõe, portanto, um poder de controlo de legalidade por parte do subordinado das ordens do seu superior.
Por outro lado, a maioria dos autores respondem afirmativamente à questão, afirmando que caso se conclua que o subordinado tem, de facto, este poder de controlo da legalidade, estaremos então a colidir diretamente com a letra da lei, que atribui ao subordinado em simultâneo com o dever de obediência, um mecanismo de proteção, que se materializa numa exclusão da responsabilidade pelos prejuízos causados na sequência do cumprimento da ordem. Também é defendido, no âmbito desta tese, o facto de que os subordinados não têm competência para examinar a juridicidade dos comandos que lhe foram atribuídos, não podendo fazer, claro, o papel de juízes em todas as suas atividades diárias e rotineiras.
Analisadas as várias correntes e feito o estudo teórica desta matéria, concluímos que, apesar de muito importante esta proteção dada pela lei e tão afincadamente defendida pela maioria doutrinária, não parece fazer muito sentido que, estando o subordinado certo da ilegalidade inerente do comando que lhe foi dado, que pode ser entendida pela natural compreensão da ordem, não possa fazer cessar imediatamente o seu dever de obediência, não estando assim obrigado a cometer uma ilegalidade, mesmo que excluída a sua responsabilidade pela prática de tal ato.
Importa, por fim, questionar uma eventual redundância da própria doutrina maioritária. Ora, segundo a mesma, perante o dever de obediência, o subalterno, vinculado a uma ordem ilegal, deve preencher o pressuposto supra explanado para que se afaste a responsabilidade. Mas, se o dever de obediência visa evitar que o subalterno se faça substituir a um juiz, pode a doutrina considerar-se redundante? Não estará também aqui implícito um dever de o subalterno averiguar a (i)legalidade da ordem, assumindo um papel de juiz, por forma a excluir a responsabilidade?
BIBLIOGRAFIA:
DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. I, 2º Edição, Almedina, 1994
JOÃO CAUPERS, Introdução ao Direito Administrativo, 11º Edição, Âncora
Sofia Tiago de Almeida, nº66411, subturma 15