O Estado de Necessidade no Direito Administrativo português e a sua moldura constitucional, a qualidade de excepcionado à procedimentalização e a responsabilidade civil do Estado

28-05-2023

1. O Estado de Necessidade no Direito Administrativo


A figura da necessidade administrativa surge consagrada no nº 2 do artigo 3º do CPA, uma formulação de âmbito mais vasto relativamente ao anterior enunciado do nº 2 do artigo 9º do DL nº 48051/67 de 21 de Novembro, que previa o caso de "necessidade e por motivo de imperioso interesse público" de lesão, em todo ou em parte, de direitos subjetivos por parte do Estado ou por parte das pessoas coletivas públicas, e portanto incorporando as de si criadas, com o respetivo direito à indemnização correlativa a esse sacrifício excecional.


Carecia ao preceito uma redação mais inclusiva, de conteúdo descerrado dos casos de preterição de regras e princípios administrativos e que cuja violação [eventual] consubstanciar-se-ia nos referidos danos, portanto não somente uma previsão implicativa do cumprimento de determinados pressupostos, entre os quais, uma lesão de direitos, desconforme com o ordenamento jurídico mas não invalidante, e à ressarcibilidade no âmbito da responsabilidade do Estado, e ainda que todos estes aspetos, adstritos a um estado de necessidade, a um "motivo de imperioso interesse público".


Nesta fase exordial do direito administrativo português escrito, da positivação deste princípio material, o instituto parecia, em nosso ver, comportar de uma ratio focada basilarmente na ideia de superioridade do interesse público fortuita, episódica, incalculável, relativamente aos direitos de particulares sacrificados, sacrifício este autorizado e justificado, mas sem nunca descurar de uma restituição determinada ou de uma compensação do prejuízo praticado a fim do cumprimento de fins maiores da comunidade.


O estado de necessidade trata-se então de um princípio edificado numa ideia normativa que resguarda a licitude de uma conduta que liminarmente contraria as orientações ou regras gerais do sistema jurídico, e que, atendendo às circunstâncias casuísticas da realidade social, consolida-se na base de um imperativo, deduzível do próprio sistema ou extraído indutivamente de casos repisados, de se abster da conotação do facto como facto ilícito ou prática desconforme ao Direito. A utilidade do imperativo conjectura-se na ocorrência de um incumprimento informal cujo resultado, a verificar-se, configurará, recairá, como um resultado dissidente do interesse público, em preterição de princípios e normas administrativas, como infra veremos. Assim sucede, como enuncia o Prof. Sérvulo Correia, quando a aplicação das regras estatuídas se afigura contraproducente e superiormente danosa relativamente ao ato dissonante. O estado de necessidade é, ademais, um princípio geral de Direito, muito anterior ao direito administrativo.


Sérvulo Correia, no seu contributo para os Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Freitas do Amaral, "Revisitando o Estado de Necessidade" (2010), estabelece um denominador comum entre o artigo 339º do Código Civil e o nº 2 do artigo 3º do CPA: Do primeiro, retiramos uma permissão de destruir ou danificar coisa alheia quando tal possibilite a desobstrução de um perigo maior, e do segundo consente-se a lesão direta do interesse público correspondente à observância por parte da Administração Pública das regras convencionadas. Ambos os institutos pressupõem, como referimos, a validação de comportamentos lesivos de direitos dos particulares e implicam a ingerência nas esferas morais ou patrimoniais das pessoas jurídicas.


Deste modo, logrando relativamente à redação do 9º/2 do DL nº48051/67 de 21 de Novembro, podemos extrair deste "novo" preceito do Código do Procedimento Administrativo uma verdadeira habilitação de um comportamento administrativo desconforme, sendo que o ponto de focagem passa a ser o da preterição efetiva das regras e princípios gerais do direito administrativo, desligada das suas consequências eventuais, diferentemente da redação anterior centrada na indemnizabilidade dos danos causados aos particulares. Como o Prof. Sérvulo Correia elucida, "o âmbito não é agora apenas o da responsabilidade administrativa, mas antes o da preterição de qualquer regra estabelecida no CPA".


Relativamente ao modo como tem evoluído o direito administrativo, o instituto da necessidade administrativa é uma manifestação perfeita de como a complexidade das relações institucionais e sociais reduziu a importância da lei formal, agora modelada e projetada essencialmente para a definição de meras directrizes finalísticas ou regras de competência, e um esplêndido exemplar da tese, ou do entendimento contemporâneo doutrinal e prático, da inviabilidade da "omniprevisão" e "omniestatuição" por parte do legislador e do ditame primordial de fazer compensar essa insuficiência legislativa, reconquistando à Administração Pública alguma autonomia para fazer inobservar as regras do poder primário.


1.1 Em particular: O Estado de Necessidade e o princípio da legalidade administrativa. Relação


Cumpre ainda explanar do seu estatuto de princípio geral como sucedâneo do princípio da legalidade (como de resto se depreende da sua inserção sistemática no artigo 3º do CPA de consagração deste princípio fundamental), como uma sua vertente com conteúdo substantivo de habilitação normativa, e que, por tal não implicar uma denegação da legalidade, mas antes a adoção de um regime excecional de legalidade: Ao invés da disciplina do regime geral, e devidamente preenchidos os requisitos, a competência ou o procedimento, forma ou conteúdo de determinada conduta administrativa, aplica-se um regime especial de legalidade administrativa, o estado de necessidade.


Destarte, o princípio do estado de necessidade parte de um bloco de juridicidade como nos refere o Prof. Sérvulo Correia, constituindo uma habilitação de conduta que não se conota como ilegal, permitindo-se então um ato como exceção à legalidade.


De resto, apagam-se as dúvidas quanto a natureza de princípio ou regra jurídica, porquanto tendo o estado de necessidade por regra, dir-se-ia que tal sucede em virtude de uma inaplicação do regime geral, mas será bem mais do que isso, desde logo porque as regras jurídicas ou são cumpridas ou não o são, e havendo colisão de princípios de igual valor em abstracto, há que aferir do seu peso na situação concreta, sendo esta ponderação inerente desta figura que apresentamos.


2. Os pressupostos do atual estado de necessidade administrativa


A doutrina e a jurisprudência têm desenvolvido o conjunto de requisitos factuais que permitem a aplicação devida do instituto, já que a previsão do nº 2 do artigo 3º do CPA constitui uma cláusula geral aberta à densificação. Porém, a última pronúncia do Supremo Tribunal Administrativo (Acórdão de 4 de Abril de 2004) quanto a uma definição do estado de necessidade lê-se "atuação sobre o domínio de um perigo iminente e atual para cuja produção não haja concorrido a vontade do agente".


Os pressupostos, resultado de construção doutrinal e jurisprundencial e cuja verificação taxativa implica a viabilização do regime especial do artigo 3º/2 do CPA, são os seguintes: i) Um perigo iminente e atual; ii) De causa excecional; iii) Sem que a causa excecional tenha sido provocada pelo agente; iv) Para fins de interesse público; v) Situação de si só contornável ou atenuável pela inaplicação pela Administração Pública da regra estabelecida (característica essencial do estado de necessidade administrativa);


Primeiramente, o perigo corresponde a um risco provável de que a situação se conduza num facto lesivo. O perigo iminente reflete a ideia de urgência, pelo que só uma atuação célere pode ser eficaz na prevenção dos efeitos danosos. Já a atualidade do perigo, conexa com a sua urgência, mas dela não se confundindo, caracteriza-se por não ser uma situação permanente, continuada no tempo, mas antes dotada de transitoriedade, cristalizada em um exato momento presente, não podendo remeter a situações passadas ou futuras, mas momentâneas ou ocasionais.


Ainda sobre o perigo, este tem necessariamente de advir de causa excecional, ou seja, deve a situação de perigo enquadrar-se num circunstancionalismo social diferente do habitual e conhecido, ao qual se aplicam as regras gerais e abstratas (a excecionalidade também significa anormalidade). Servirão de exemplo, como alude o Prof. Diogo Freitas do Amaral, o estado de guerra, o estado de sítio ou um grave caso de calamidade natural, consistindo, deste modo, uma derradeira situação de necessidade pública. Aqui se entra no pressuposto de o facto, da causa excecional, não provir da vontade do agente, de não ser de causa sua, mas sim, de facto fortuito, natural ou de terceiro.


Conclusões:


i) A razão de ser do instituto e da aplicabilidade do seu regime consubstancia-se na supremacia da justiça material sobre o legalismo formal, na prevalência de um Direito justo e funcional para circunstancias excecionais;

ii) Para a efetivação da legalidade excecional e da validação de condutas ilegais desconformes ao direito administrativo, é necessária a destrinça de pressupostos como categorias abstratas às quais se reconduzem os fatores que jogam para concreta;


Bibliografia:

AMARAL, Diogo Freitas do, "Curso de Direito Administrativo", V. II, 4ª Edição, Almedina, (2018), págs. 48-49.


CORREIA, Sérvulo, "Contributo para os Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Freitas do Amaral" (2010). 



Professor Regente: Doutor Vasco Pereira da Silva

Professor Assistente: Jorge Pação

Raquel Antunes Duarte, Turma B, Subturma 15


Crie o seu site grátis! Este site foi criado com a Webnode. Crie o seu gratuitamente agora! Comece agora