O Provedor de Justiça no quadro constitucional e administrativo português
Como decorre do nº 1 do artigo 1 da Lei nº 9/91 de 9 Abril, o Provedor de Justiça é um "órgão do Estado", eleito pela Assembleia da República mas dela independente, tendo como função primeira "a defesa e promoção dos direitos, liberdades e garantias e interesses legítimos dos cidadãos", servindo de escudeiro na campanha do respeito pelos valores e princípios estruturantes da Constituição.
De existência obrigatória por força da Constituição, o Provedor de Justiça assume um papel de intermediário entre os cidadãos e o Estado com os seus poderes públicos, sendo, por isso, um órgão político, que tem por vista a salvaguarda dos interesses dos primeiros perante a atuação abusiva ou ilegítima do segundo. A sua atuação não é, contudo, vinculativa mas meramente simbólica, sendo desprovido de poderes decisórios, como expressamente determina o nº 1 do artigo 23º da CRP e, novamente, o nº 1 do artigo 1º do Estatuto do Provedor de Justiça, ao referir-se à sua atuação através de "meios informais".
Destarte, a doutrina tem aludido a uma "magistratura de influência", ou soft power, que se baseia essencialmente na análise jurídica de queixas que lhe chegam (contando com uma equipa de técnicos jurídicos para o efeito, como à frente veremos) e da emissão de recomendações quando as primeiras se afigurem relevantes e de interesse público, sempre muito bem fundamentadas. Como dissemos, o parecer final resultante de uma queixa não tem qualquer eficácia no plano vinculativo, mas pode motivar, por exemplo, a prática jurisdicional, no âmbito da magistratura de influência.
O seu estatuto de órgão independente perante o Governo e perante a Assembleia da República, como consagra o nº 3 do artigo 23º da CRP, assim como a independência da sua atividade (23º/2 da CRP e 4º/2 da Lei nº 9/91, de 9 de Abril), cimentam um exercício livre e isento dos seus poderes.
O nº 1 do artigo 23º da CRP permite aos cidadãos o recurso à figura da queixa, por ação ou omissão, e perante o Provedor de Justiça, no exercício de um direito de ampla magnitude no constitucionalismo e para o Direito Administrativo: o direito de petição.
O direito de petição encontra-se previsto no artigo 52º da CRP, consagrando o direito de todos os cidadãos de "apresentar individual ou coletivamente, aos órgãos de soberania ou a quaisquer autoridades, petições, representações, reclamações ou queixas, para defesa dos seus direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral, e bem assim, o direito de serem informados, em prazo razoável, sobre o resultado da respetiva apreciação". O conceito de cidadãos abrange os próprios funcionários e agentes dos poderes públicos na sua relação com estes, nomeadamente nas relações de trabalho, o que lhes confere uma regalia em detrimento das classes de trabalhadores do setor privado.
Desta forma, o direito de petição pode ser dirigido contra quaisquer entidades públicas, e assim como ser exercido perante a Assembleia da República, perante o Governo ou perante o Presidente da República, ou quaisquer outros órgãos ou mesmo serviços públicos.
Como enfatizado por Gomes Canotilho e Vital Moreira, nada obsta a que o Provedor de Justiça se ocupe oficiosamente de questões de que tenha conhecimento por outros meios que não uma queixa direta, como sejam, os por via de imprensa e da comunicação social.
Curiosamente, pode ser a própria Assembleia da República, as comissões parlamentares ou os deputados a transmitir as queixas, segundo o disposto no artigo 26º do EPJ.
A Procuradoria Geral da República pode estender os seus serviços às Regiões Autónomas, em sede de regulamento aprovado pelo Provedor de Justiça e publicado no Diário da República, por força do nº 3 do artigo 17º do EPJ.
A inclusão da figura do Provedor de Justiça na parte geral dos direitos fundamentais da CRP torna clara a tese de se tratar essencialmente de um órgão de garantia dos direitos fundamentais, sem prejuízo do seu papel como órgão de garantia da constituição, pelas suas funções no sistema de fiscalização da constitucionalidade: O Provedor de Justiça é legitimado para requerer a fiscalização abstrata de quaisquer normas (281º/2, al. d) CRP) e para requerer inconstitucionalidade por omissão (283º CRP).
A coadjuvação do Provedor de Justiça e os provedores adjuntos
O Provedor de Justiça é coadjuvado no exercício das suas funções por coordenadores e assessores, nos termos do nº 1 do artigo 17º do EPJ, e a organização da coadjuvação constará de regulamento por si aprovado (17º/2 do EPJ).
A análise das queixas e a prossecução das petições conta com ainda com a participação de dois provedores adjuntos, nomeados e exonerados a todo o tempo (16º/1 do EPJ), desde que comprovada a sua independência, à semelhança da do Provedor, e com as habilitações académicas necessárias.
As atribuições do Provedor de Justiça são susceptíveis de delegação a um dos provedores adjuntos, se relativas aos direitos da criança (16º/2 do EPJ) e a título de especialidade. Pode ainda delegar nos provedores adjuntos todos os poderes a que se refere o nº 3 do artigo supracitado neste parágrafo. Deve ainda designar um dos provedores adjuntos para assegurar o funcionamento dos serviços da Procuradoria Geral da República em caso de cessação ou interrupção do respetivo mandato.
Alguns aspetos sobre a relação do Provedor de Justiça com os órgãos de soberania: As imunidades e o dever de audição prévia
O nº 1 do artigo 8º da Lei nº 9/91 de 9 de Abril determina que o Provedor de Justiça não responde civil ou criminalmente por quaisquer recomendações, reparos ou opiniões que emita ou pelos atos que pratique no exercício das suas funções. O Provedor de Justiça só será detido com a autorização da Assembleia da República, a menos que se trate de crime punível com pena de prisão superior a três anos e em flagrante delito (8º/2).
Caso seja movido procedimento criminal contra o Provedor de Justiça, e este tenha sido acusado definitivamente, compete à Assembleia da República deliberar se o mesmo deve ou não ser suspenso para efeitos de seguimento do processo, salvo no caso de crime punível com os requisitos a que se refere o artigo 8º/2 do EPJ, e nos termos do artigo 8º/3 do mesmo diploma.
Deste modo, a Assembleia da República, como órgão de soberania representativo dos cidadãos, à luz do artigo 147º da CRP , goza de vastos poderes de decisão sobre eventuais detenções do Provedor de Justiça, quando não preencham os requisitos supramencionados.
O dever de audição prévia encontra-se previsto no artigo 34º do EPJ, sendo que o Provedor de Justiça "deve sempre ouvir os órgãos ou agentes postos em causa, permitindo-lhes que prestem todos os esclarecimentos necessários antes de formular quaisquer recomendações".
Os limites do âmbito dos poderes do Provedor de Justiça
Da Constituição não parece retirar-se quaisquer limitações expressas ao âmbito dos poderes do Provedor de Justiça, podendo abranger todos os poderes públicos e quaisquer tipos de atos públicos, ressalvando os atos jurisdicionais que por sua natureza não integram a sua esfera de ação. Mas a solução não é a mesma para o EPJ (artigo 22º).
A atuação do Provedor de Justiça engloba os poderes para efetuar visitas de inspeção, com ou sem aviso (21º/1, al. a) do EPJ), os poderes para realizar investigações e inquéritos (alínea b)), e os poderes para procurar as soluções mais adequadas ao aperfeiçoamento da atividade administrativa e à tutela dos interesses legítimos dos cidadãos (alínea c)).
Convém ainda precisar que os poderes de inspeção e de fiscalização do Provedor abrangem a atividade administrativa e os atos praticados na superintendência da Administração Pública, no que toca aos órgãos de soberania e os órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas (22º/2 do EPJ).
Conclusão final
O Provedor de Justiça, não tendo poderes públicos decisórios, não pode enviar comandos com força vinculativa às entidades públicas nem sequer anular, revogar ou modificar os atos dos poderes públicos, como determina o nº 1 do artigo 22º do EPJ, mas somente elaborar recomendações sobre a forma de substituição ou de revogação de um ato administrativo.
Raquel Antunes Duarte
Bibliografia
AMARAL, Diogo Freitas, "Curso de Direito Administrativo", Vol. I, Almedina, 4.ª Edição, 2015
ANTÓNIO, Isa, Manual Teórico-Prático de Direito Administrativo, Almedina, 3.ª edição, págs. 132-133
MOREIRA, Vital / J. J. Gomes Canotilho, Vol. I, 4º Edição, Coimbra Editora 2007