Ordens Profissionais e a reforma do respetivo regime jurídico proposto pelo PS
No âmbito da administração autónoma, cuja prossecução é de interesses públicos próprios das pessoas que a constituem, regulando-se desta forma a si mesma (autoadministração), definindo com independência a orientação das suas atividades, sem sujeição a hierarquia ou a superintendência do Governo, estão inseridas as ordens profissionais de que abordaremos.
Inicialmente, as ordens profissionais eram associações de profissões liberais, embora hoje muitos dos profissionais inscritos sejam trabalhadores subordinados (câmaras profissionais distintas das ordens profissionais devido ao menor grau académico dos associados), deste modo, as ordens profissionais enquadram-se nas associações públicas de entidades privadas, ou seja, são formadas pelos membros de certas profissões de interesse público com o fim de, por devolução de poderes do Estado, regular e disciplinar o exercício da respetiva atividade profissional. Atualmente, em Portugal existem 18 ordens profissionais, entre elas por exemplo a ordem dos Advogados, dos Enfermeiros, etc.
Desta forma, poder-se-á afirmar que ao criar para a prossecução do interesse público uma associação pública, transferindo-lhe poderes de autoridade originariamente pertencentes ao Estado, a lei reconhece, implicitamente, que um certo interesse público específico será prosseguido de uma melhor forma, pelos particulares interessados e sob a direção de órgãos por si eleitos do que por um serviço integrado na administração direta do Estado.
As ordens profissionais desenvolvem normalmente uma intensa atividade de defesa da profissão, pelo que além de representar e defender os interesses dos profissionais que dela fazem parte, têm como principal atribuição regular o acesso e o exercício de determinada profissão. Esta responsabilidade está prevista na lei com o objetivo de garantir as boas práticas profissionais e assegurar a punição de qualquer violação ou incumprimento das regras deontológicas, contudo, estão impedidas de exercer ou participar em atividades de natureza sindical ou outras relacionadas com a regulação das relações económicas e profissionais dos seus membros, a título de exemplo, o direito de decretar greve.
Segundo a orientação de Gomes Canotilho e Vital Moreira, a criação de ordens profissionais (e demais associações públicas) está sujeita a quatro princípios constitucionais: Excecionalidade (apenas podem ser criadas se for necessário à satisfação de uma determinada finalidade pública); Especificidade (só podem ser criadas para fins específicos, determinados por uma necessidade pública); Proibição do exercício de atividade sindical (as ordens não podem defender os seus membros na sua qualidade de trabalhadores ou prestadores de serviços) e Democracia interna (os seus órgãos devem ser eleitos diretamente pelos membros ou por uma assembleia de representantes)
O legislador ao definir o regime das ordens profissionais, associou um conjunto de poderes jurídicos fundamentais ao desempenho das suas funções, pelo que os traços desse regime traduzem-se em características como: a unicidade que impede a existência de outras associações com os mesmos objetivos; quotização obrigatória que é um corolário da filiação obrigatória ( explica-se pela conveniência de fazer recair sobre todos os profissionais de cada setor os custos correspondentes aos benefícios resultantes da sua corporação) e uma contraprestação pelos serviços prestados pelas ordens aos seus associados. Ademais a autoadministração representa ainda um tributo pago pelas ordens profissionais à sua natureza associativa, bem como o poder disciplinar, o qual constitui um poder que se estende até à interdição do exercício da atividade profissional.
As ordens profissionais representam em si mesmas uma restrição à liberdade de escolha da profissão, uma vez que o acesso à profissão passa pela obtenção de uma autorização administrativa da própria ordem, constituindo de igual modo uma restrição à liberdade de exercício da profissão, uma vez que é inacessível a todos os que não estiverem inscritos e por isso, não sujeitos ao poder disciplinar dos órgãos da ordem e às suas regras internas e deontológicas etc. Estas instituições visam melhorar o funcionamento do setor das profissões regulamentadas, especificamente, no que diz respeito ao reconhecimento das qualificações profissionais, à eliminação das restrições ao uso de comunicação comercial (publicidade) e à eliminação dos requisitos ao acesso e exercício de profissões regulamentadas que não se mostrem justificados ou proporcionais.
As ordens profissionais configuram-se como autoridades competentes em cada setor, que visam facilitar o exercício das liberdades fundamentais de estabelecimento e livre prestação de serviços, garantindo simultaneamente aos consumidores e aos beneficiários dos serviços abrangidos, uma maior transparência e informação proporcionando-lhes uma oferta mais ampla, diversificada e de qualidade superior. No entanto, a criação destas ordens profissionais não tem sido vista com "bons olhos", na medida em que se torna questionável que um país com uma economia de mercado assente na livre concorrência e dotado de uma Constituição que protege a liberdade de escolha de profissão (artigo 47.º, n.º 1) e estabelece o carácter excecional das ordens, crie tantas ordens profissionais, que condicionam o acesso a muitas profissões sem que se vislumbre qual o interesse público que se visa proteger.
Daí que se pretenda uma reforma do regime jurídico das ordens profissionais, cuja proposta foi realizada pelo PS (apresentou o projeto de lei n.º 974/XIV/3, que visa alterar a Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, com vista ao reforço do interesse público, da autonomia e independência da regulação e promoção de acesso a atividades profissionais), assumindo nas eleições legislativas de 2019, a garantia da liberdade de acesso à profissão, como direito constitucionalmente garantido, impedindo práticas que limitem ou dificultem o acesso às profissões reguladas, de acordo com as recomendações da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) e da Autoridade da Concorrência.
Numa democracia moderna, a defesa de interesses de uma classe de profissionais é essencial, sendo um dever dos sindicatos ou de associações privadas livremente criadas não assumir as missões das ordens, cujos poderes são delegados pelo Estado, devendo, por conseguinte, orientar a sua atividade pelo único objetivo que as justifica, designadamente a defesa do interesse público no exercício das suas funções regulatórias. É esta missão que a iniciativa legislativa do PS visa assegurar, aparecendo como garante do exercício de forma isenta e independente, por parte das ordens profissionais, no respeitante ao poder de regular deontologicamente a respetiva profissão, bem como garantir o acesso dos jovens academicamente habilitados a uma profissão devendo ser regulado de forma isenta, sem restringir de forma injustificada ou desproporcionada e ainda, por forma a garantir que exercem a sua importante função de supervisão e de disciplina profissional de forma independente e com vista à proteção dos destinatários dos serviços profissionais.
Deste modo, com base numa recomendação feita pela UE e a OCDE, todavia sem sucesso, não é de estranhar que a UE tenha feito depender a transferência de verbas do PRR da sua concretização, pressionando por esta via, o país a implementar o que até agora era uma recomendação. Assim, Portugal comprometeu-se, a rever a lei relativa às profissões autorreguladas, para responder a quatro objetivos: (1) Separar, nas ordens, as funções de regulação e de representação; (2) Reduzir restrições no acesso a profissões reguladas, que deve apenas ser limitado para salvaguarda de interesses constitucionais e com respeito pelos princípios da necessidade e proporcionalidade;(3) Eliminar restrições à propriedade e à gestão de sociedades profissionais, com salvaguarda dum regime de prevenção de conflitos de interesses; (4) Permitir as sociedades profissionais multidisciplinares.
Porém, também este projeto de lei para regular ordens profissionais suscita críticas e dúvidas, devido a problemas que podem colocar em causa a autonomia das ordens profissionais, nomeadamente sobre o facto de atribuir a possibilidade às universidades para designar membros de órgãos das ordens.
Como se pronuncia Luís Menezes Leitão: "Não nos parece que faça sentido, são entidades completamente estranhas e, portanto, sem relação direta com as questões dos profissionais liberais". A autonomia das ordens fica claramente posta em causa (diz-nos o ainda atual bastonário da Ordem dos Advogados) defendendo que a nova lei tem claramente um objetivo antidemocrático, pretendendo destruir a advocacia enquanto profissão livre e independente, começando por atacar a sua própria Ordem, acrescentando que um ataque a uma Ordem dos Advogados é um ataque ao Estado de Direito. Também se pronunciou o Bastonário da Ordem dos Farmacêuticos, considerando que são, de facto, muitas condicionantes para poderem continuar a dizer que se exerce uma profissão livre e independente. Além de uma clara violação do princípio constitucional da autorregulação profissional, a proposta legislativa do PS propõe um novo órgão com poderes de regulamentação, administrativos, disciplinares, de pronúncia e de supervisão.
No texto proposto pelo PS determina-se que a criação de novas ordens profissionais será sempre precedida de audições de associações representativas da profissão em causa e a emissão de parecer de outras partes interessadas, nomeadamente os conselhos de reitores das universidades e dos politécnicos.
Luís Menezes Leitão (ainda atual bastonário da Ordem dos Advogados) defende também que propor a redução do estágio profissional de acesso à Ordem de 18 para 12 meses sem exigir, em contrapartida, um aumento das qualificações mínimas para acesso à Ordem dos Advogados coloca questões de desigualdade e comparabilidade com os colegas europeus. Como expõe: "Uma redução do estágio mantendo-se a possibilidade de apenas entrar na Ordem com a licenciatura deixaria os advogados portugueses com muito menos qualificações que o resto da Europa e, portanto, parece-nos que essa situação não deve ocorrer, mas porque estamos numa relação a nível europeu e não nos parece que o país possa estabelecer uma disparidade tão grande com os outros países"
Luís Menezes Leitão tem, igualmente dúvidas acerca do que se propõe relativamente a sociedades multidisciplinares, afirmando que, apesar de mais cuidado no novo texto, continuam a levantar-se questões relativamente ao sigilo profissional. Como profere: "Continua a ser uma questão que poderá levantar problemas, uma vez que a profissão de advogado é dificilmente compatível com outras profissões, nomeadamente com os contabilistas certificados."
António Mendonça, bastonário da Ordem dos Economistas, e presidente do Conselho Nacional das Ordens Profissionais (CNOP), anunciou que as ordens profissionais pretendem ser um "parceiro" no processo legislativo sobre o novo regime e para tal, já está em curso um processo para a preparação de propostas concretas sobre o regime jurídico das associações públicas profissionais. Para além disso, criticou ainda o facto de o Parlamento querer rever a lei sem fazer uma avaliação rigorosa dos efeitos positivos e negativos da sua aplicação, desde a última alteração ao regime (há oito anos), e que em alguns aspetos se revelou um "espartilho" para o funcionamento e desenvolvimento das ordens. Por outro lado, o Conselho discorda também das alterações à composição e competência de órgãos sociais, sobretudo o de supervisão e o disciplinar (onde prefere que se mantenha a eleição direta e refuta a imposição de três membros oriundos da academia e que não sejam membros da respetiva Ordem) e o de provedor. "Faz algum sentido chamar quem não exerce a profissão (pois não é membro da respetiva Ordem) a apreciar se uma determinada conduta, participada disciplinarmente, viola ou não essas regras?", questionou António Mendonça.
Também para o Bastonário da Ordem dos Engenheiros é incompreensível e desajustado que se pretenda reservar a função de supervisão da legalidade e conformidade estatutária e regulamentar, e até do poder disciplinar em sede de recurso, a um órgão de supervisão composto, concomitantemente, por profissionais externos à associação. Ora, a função de autorregulação da profissão exige conhecimentos e independência técnica, por isso não se entende como é que profissionais de outras áreas, totalmente estranhos à profissão, poderão ter os conhecimentos necessários e experiência em engenharia que cabalmente lhes permita desempenhar funções em matérias tão relevantes como as que dizem respeito ao acesso à profissão.
O Partido Socialista e aqueles partidos que com ele votaram, ao invés de tratar de propor em diálogo, com as ordens e representantes das diversas associações profissionais, relativamente às recomendações da OCDE, AdC e UE de 2017/18 que a Assembleia da República entendesse por pertinentes, não encontrou melhor do que criar sem justificação plausível, mais duas ordens em 2019 a juntar às dezoito já existentes!
Do mesmo modo, o Bastonário da Ordem dos Arquitetos , considera que as propostas que supostamente deveriam regular a atividade das Ordens Profissionais, mais não são do que "uma ingerência do poder político" e tendo em conta o interesse público que se cumpre prosseguir, enquanto associação pública profissional, está convicto que o novo enquadramento não garante o interesse público, autonomia e independência da regulação e promoção do acesso a atividades profissionais, como contende com a defesa e promoção da arquitetura, no reconhecimento da sua função social e cultural, não zelando pela dignidade e prestígio da profissão de arquiteto. Embora já tenha sido bastante debatido este assunto há que ter em consideração que uma primeira versão da proposta de alteração à lei foi aprovada na sua generalidade pelo parlamento em outubro de 2021, mas em virtude da dissolução da Assembleia da República, em dezembro do mesmo ano, este diploma ficou pelo caminho devido à necessidade de novas eleições legislativas.
Em suma, tendo em consideração todas as críticas tecidas pelas diversas ordens profissionais, creio que a proposta realizada pelo PS acerca da reforma do regime jurídico das ordens profissionais não é a mais adequada, padecendo de inconformidades quanto ao próprio objetivo, que se prende com o reforço do interesse público, da autonomia e independência da regulação e promoção de acesso a atividades profissionais. Embora, não se podendo descurar da importante iniciativa, visto que face ao exposto existem problemas que carecem de uma adequada resolução, como o facto da excessiva criação de ordens profissionais sem se ter em consideração o caracter excecional a que devem ser sujeitas.
Face ao exposto sou da opinião que o passo primórdio e essencial na respetiva reforma deve-se pautar pela parceria legislativa entre as próprias ordens profissionais e o Estado, e de acordo com Orlando Monteiro da Silva, presidente da Associação Nacional dos Profissionais Liberais, e ex. bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas quando crê que a melhor solução passará por um modelo regulatório nas profissões qualificadas com uma visão mais abrangente e integrativa da que decorre somente da regulação pelo Estado e da autorregulação por ordens profissionais.
Mariana Correia
Bibliografia:
Diogo Freitas do Amaral, "Curso de Direito Administrativo" vol I, 3ªedição, pg 420-421, 435-472.
https://cnop.pt/sobre/funcoes/
https://observador.pt/opiniao/ordens-profissionais-as-tentacoes-da-desordem/