Princípio da Imparcialidade e análise dos impedimentos
Como profere o Professor Diogo Freitas do Amaral:" A Administração pública é o sistema de órgãos, serviços e agentes do Estado, bem como das demais pessoas coletivas públicas, e de algumas entidades privadas, que asseguram em nome da coletividade a satisfação regular e contínua das necessidades coletivas de segurança, cultura e bem-estar".
A Administração está subordinada à lei nos termos do princípio da legalidade (art 3º CPA), mas a verdade é que a lei não regula sempre do mesmo modo os atos a praticar pela administração pública, o que justifica a presença dicotómica das formas típicas pelas quais a lei modela a sua atividade: vinculação e discricionariedade.
Como acentua Engisch, na discricionariedade apesar de a norma facultar à administração a faculdade de escolha entre várias alternativas possíveis (discricionariedade de ação; discricionariedade de escolha; discricionariedade criativa), o exercício do poder de escolha deve ir endereçado a um escopo e resultado da decisão que é conforme com todas as diretrizes jurídicas.
A realidade dos nossos dias demonstra, que tal escolha é ainda e sobretudo condicionada e orientada por ditames que fluem dos princípios e regras gerais que vinculam a administração pública (designadamente, igualdade, proporcionalidade e imparcialidade), tendo sido acentuado pela Constituição da República Portuguesa de 1976 através da consagração do art 266º. Neste sentido, o órgão administrativo está obrigado a encontrar a melhor solução para o interesse público, pelo que o poder discricionário não é um poder livre, mas um poder jurídico delimitado pela lei. Assim, os princípios da atividade administrativa são limites de todas as condutas administrativas, cuja violação envolve tipicamente o vício de contrariedade à própria lei.
No âmbito deste post, procurarei abordar concretamente o princípio da imparcialidade (previsto no art 9ºCPA), os efeitos aquando da sua violação e por fim abordar a questão dos impedimentos centrada no art 69º e 73º CPA.
Numa lógica ilustrativa, a estátua que representa a justiça é uma figura humana que tem na mão uma balança com dois pratos e uma venda nos olhos, ou seja, se a balança procura representar a ideia de igualdade, a venda nos olhos procura representar a ideia de que a justiça deve ser cega, não devendo determinar-se em função de amizade ou inimizade para com qualquer das partes.
O surgimento deste princípio na função administrativa está historicamente ligado à necessidade de garantir a independência e a neutralidade política dos funcionários públicos e, consequentemente, da própria administração pública.
Conforme resulta do art 9º CPA: "A administração pública deve tratar de forma imparcial aqueles que com ela entrem em relação, designadamente, considerando com objetividade todos e apenas os interesses relevantes no contexto decisório e adotando as soluções organizatórias e procedimentais indispensáveis à preservação da isenção administrativa e à confiança nessa isenção."
Seguindo o pensamento de Maria Teresa Ribeiro pode dizer-se que "imparcialidade é a conduta objetiva, desinteressada, isenta, neutra e independente". Assim, o princípio da imparcialidade impõe que os órgãos e agentes administrativos ajam de forma isenta e equidistante relativamente aos interesses em jogo, nas situações que devem decidir ou sobre as quais se pronunciem sem carácter decisório.
De uma análise implícita do CPA e do entendimento do Professor Diogo Freitas do Amaral, este princípio emana duas vertentes, nomeadamente:
- uma vertente negativa, na qual a imparcialidade traduz, desde logo, a ideia de que os titulares de órgãos e os agentes da administração pública estão impedidos de intervir em procedimentos, atos ou contratos que digam respeito a questões do seu interesse pessoal ou da sua família, ou de pessoas com quem tenham relações económicas de especial proximidade, por forma que não se possa suspeitar da isenção ou honestidade da sua conduta.
- Uma vertente positiva, que por sua vez, a imparcialidade surge como um dever por parte da administração pública de ponderar todos os interesses públicos secundários e os interesses privados legítimos, equacionáveis para o efeito de certa decisão, anterior à sua adoção. Assim, com base nesta vertente o juiz administrativo encontra a via para a anulação dos atos ou comportamentos que se demonstrem praticados sem uma exaustiva ponderação dos interesses juridicamente protegidos.
Posto isto, e de acordo com o pensamento do Professor Diogo Freitas do Amaral: "O princípio da imparcialidade não é apenas uma mera aplicação da ideia de justiça, mas antes como aplicação da ideia de proteção da confiança dos cidadãos na seriedade e honestidade da administração pública do seu país". Deste modo, a verdadeira pretensão deste princípio não é a obtenção de decisões administrativas justas, mas evitar a suspeita da imparcialidade dos órgãos competentes que vão tomar a decisão (ilustrado pelo velho princípio "ninguém pode ser juiz em causa própria").
A violação da imparcialidade tem como traços característicos a dificuldade de prova e, sobretudo na sua dimensão negativa, o facto de depender frequentemente de circunstâncias relativas, não à administração em sentido orgânico, mas às pessoas singulares que em concreto são agentes ou titulares de órgãos administrativos. Pelo que, a ordem jurídica estabelece mecanismos tendentes a assegurar que os titulares de órgãos e agentes administrativos não cedam a influências na tomada de decisões, consistindo nas garantias preventivas de imparcialidade.
As garantias de imparcialidade implicam o impedimento dos titulares de órgãos e agentes quanto à participação em determinados procedimentos administrativos e na formulação das respetivas decisões.
Os artigos 69º e 73º CPA identificam as situações em que ocorrem tais impedimentos, sendo que o artigo 69º contém uma circunstância de grande proximidade entre o titular do órgão ou agente e os interesses privados em jogo no procedimento (como por exemplo é o caso do seu cônjuge), consistindo por isso, um impedimento absoluto do titular do órgão ou agente administrativo. Pelo que, tal impedimento não carece de qualquer declaração constitutiva, funcionando automaticamente a partir do momento em que ocorrem os factos determinantes da sua verificação, por outro lado, o titular do órgão fica, em princípio, impedido de praticar qualquer ato no âmbito do procedimento em causa. E por fim, os atos ou contratos em que tenham intervindo titulares de órgãos ou agentes impedidos são ilegais e anuláveis (artigo 76 nº1 CPA).
Por sua vez, o art 73º CPA diz respeito a situações em que, apesar de poderem suscitar dúvidas/suspeitas acerca da isenção do concreto titular de órgão ou agente administrativo, a sua proximidade em relação aos interesses privados em jogo no procedimento é menor (é o exemplo da hipótese de um parente em linha reta). Como este impedimento revela um caracter relativo, não existe uma enumeração taxativa das situações que originam o impedimento, tendo a lei recorrido a uma cláusula geral presente no respetivo art 73nº1 CPA ("Quando se possa com razoabilidade duvidar seriamente da imparcialidade da sua conduta ou decisão"). E ainda, a mera verificação de uma das circunstâncias previstas nº2 do mesmo artigo, não implica que ocorra por força do impedimento, dependendo a sua existência da concretização da respetiva cláusula geral mediante a valoração dos conceitos indeterminados nela usados, implicando uma certa margem livre de apreciação (conforme a doutrina dualista de Marcelo Rebelo de Sousa ou apenas da discricionariedade criativa como defende a doutrina monista). Por fim, até à decisão da questão do impedimento o titular do órgão ou agente deve continuar a intervir no procedimento como se nada se tivesse passado (conforme o artigo 75 nº3 CPA a contrario sensu), pelo que a declaração do impedimento tem caráter constitutivo (art 75nº3 CPA).
Em suma, a maior diferença que demarca estas duas situações é o facto de que havendo um impedimento pelo art 69º CPA a lei obriga a substituição do órgão administrativo normalmente competente por outro, que tomará de forma imparcial a decisão no seu lugar, já nos casos de suspeição regulados pelo art 73ºCPA a substituição não é automaticamente obrigatória, carecendo de um requerimento pelo próprio órgão que pede escusa de participar naquele procedimento, ou requerimento por parte de um particular que opõe uma suspeição e pede a sua substituição.
Para além disso, Diogo Freitas do Amaral entende que a interpretação da expressão "não podem intervir em procedimento normativo" do enunciado normativo do art 69 nº1 CPA, deve ser realizada no sentido de apenas deverem ser consideradas proibidas as intervenções que se traduzam numa decisão ou um ato que contenha manifestamente uma influência na decisão, sendo assim lícitas as intervenções totalmente neutras como as que se limitam a mandar agendar o assunto para uma próxima reunião.
Como dispõe o artigo 76º CPA, as sanções impostas para as situações de desrespeito das normas de garantia da imparcialidade são nomeadamente, que todos os atos administrativos e contratos da administração pública em que intervenha um órgão impedido de intervir, ou na sequência de uma declaração de suspeição, serão anuláveis (nº1). Por outro lado, a falta de comunicação da verificação de um impedimento na sua intervenção constitui falta grave para efeitos disciplinares (nº2 conjugado com o art 70 nº1).
Para melhor garantir o respeito pelo princípio da imparcialidade, há muito que Marcelo Rebelo De Sousa propõe uma alteração ao preceituado do nº 1 e) do art 69º CPA, de modo a limitar as possibilidades de os políticos nomearem familiares para cargos públicos, visto que como diz "a ética não chega".
A intenção de Marcelo Rebelo de Sousa é que o Código do Procedimento Administrativo diga claramente que as disposições sobre incompatibilidades familiares se aplicam às nomeações de membros de gabinetes políticos e equivalentes e que se alargue, em paralelo, o âmbito familiar para abranger igualmente os primos. Invoca, por isso, o caso da nomeação que levou à demissão do secretário de Estado do Ambiente Carlos Martins, mesmo que não abrangido pela expressão "parente ou afim em linha reta ou até ao segundo grau da linha colateral", não tendo consistido num ato ilegal à luz do art 69º e 76º CPA. Pelo que, para abarcar os primos a lei teria de referir os parentes em linha reta ou até ao quarto grau da linha colateral, o que arrastaria também os tios-avós.
Por outro lado, o Professor Paulo Otero considera que a solução apresentada pelo Presidente da Républica para travar as nomeações de familiares na política não vai impedir a grande maioria dos casos que se têm conhecido.
Assim como outras posições, que referem que o discurso do Presidente em nada parece incidir sobre a esmagadora maioria dos casos que têm sido noticiados sobre as teias familiares nas nomeações do PS, visto que nestas situações em causa está o facto de políticos nomearem familiares de outros políticos e não dos seus próprios familiares, sendo o caso do secretário de Estado do Ambiente único.
Por outro lado, para o Professor Paulo Otero é através da necessidade de uma lei que se definem regras de natureza ética, ou seja, dizer que sem lei não há ética nos governantes e esse é o drama que o país está a tomar conhecimento e que não é exclusivo deste Governo atual, visto que há décadas que se verifica. Deste modo, defende que aceita a alteração ao Código do Procedimento Administrativo, referindo que o Parlamento devia debruçar-se com tempo na elaboração de uma lei que defina claramente situações de proibição de nomeação de familiares ou cruzadas, porque a fraude ao princípio que proíbe é a possibilidade de A nomear o filho de B e B nomear o filho de A.
Neste sentido, foi aprovada em 19 de julho de 2019 a lei nº78/2019, na qual são estabelecidas regras transversais às nomeações para os gabinetes de apoio aos titulares de cargos políticos, dirigentes da administração pública e gestores públicos. A lei visa impedir nomeações de familiares até ao quarto grau, incluindo assim os primos "direitos"(parentes do quarto grau na linha colateral). Tendo o partido Socialista reconhecido que até à data da promulgação da lei, não havia um critério uma identificação de um universo e de um local em que incidem estas restrições, consistindo na forma de reforçar a transparência tal como a clareza das normas.
Quanto às chamadas nomeações "cruzadas", isto é, quando um membro do Governo nomeia para o seu gabinete um familiar de outro governante, o diploma do PS não as interdita, determinando que sejam objeto de publicação na página eletrónica do Governo.
Para além disso, foi aditado um artigo ao estatuto do pessoal dirigente dos serviços e organismos da administração pública, pelo qual os membros do Governo ficam impedidos de nomear para o exercício de cargos de direção superior os mesmos graus familiares que se aplicam às nomeações para os seus gabinetes. E concomitantemente, este diploma alterou o estatuto do gestor público, determinando que os membros do Governo estão impedidos de nomear "ou de participar na deliberação do Conselho de Ministros que nomeie como gestores públicos" os mesmos graus de familiares previstos para os gabinetes governamentais.
A lei nº78/2019 entrou em vigor no primeiro dia da XIV Legislatura.
Posto tudo isto, face ao apelo preponderante do atual Presidente da Républica Marcelo Rebelo de Sousa, sou do entendimento de que a revisão do CPA levada a cabo foi muito importante pelo facto de combater de forma mais eficaz problemas como a corrupção política bem como reforçar o papel fulcral do princípio da imparcialidade, que se destaca como um dos principais limites à atuação discricionária da administração pública como garantia administrativa que acarreta (através da proteção da confiança dos cidadãos) e, seguindo à letra a representação humana da ideia de Justiça como sendo cega e impermeável a influências ou condicionantes das decisões dos órgãos administrativos.
Mariana Correia sub 15
Bibliografia:
- https://www.dn.pt/poder/o-que-marcelo-quer-mudar-na-lei-o-artigo-69-do-codigo-administrativo-10774499.html
- https://www.tsf.pt/politica/codigo-de-conduta-do-governo-ja-limita-nomeacoes-de-familia-marcelo-defende-que-nao-chega-10775839.html
- https://www.dn.pt/poder/marcelo-admite-que-como-a-etica-nao-chega-e-preciso-limitar-nomeacao-de-familiares--10766626.html
- https://mediotejo.net/gaviao-autarcas-declaram-afastamento-total-dos-procedimentos-onde-tem-familiares-a-concurso/
- Diogo Freitas do Amaral, V2, "Curso de Direito Administrativo".
- Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, V1, "Direito Administrativo Geral".