Princípio da Legalidade

23-05-2023

A Administração Pública tem o seu fundamento na prossecução do interesse público, que é o seu norte, guia e fim, no entanto a Administração Pública não busca a essa prossecução de qualquer maneira e muito menos de maneira arbitrária/totalitária, pelo que deve respeitar um certo número de princípios e regras, isto é, a Administração Pública deve prosseguir o interesse público obedecendo à lei, nisto consiste o Princípio da Legalidade Administrativa.

Consagração Constitucional: art.266º/nº. 2 CRP. Consagração no Código do Procedimento Administrativo: art.3º CPA.

Marcello Caetano entendia este princípio como o facto de "nenhum órgão da Administração Pública tem a faculdade de praticar atos que possam contender com interesses alheios senão em virtude de uma norma geral anterior". Esta é a visão clássica que gira à volta de uma proibição à Administração Pública em lesar direitos ou interesses de particulares, exceto com base na lei, ou seja, é entendido como um limite à ação administrativa estabelecido a favor dos particulares e dos seus interesses.

Entretanto, a doutrina também entende o princípio da legalidade segundo uma visão mais moderna, designadamente no facto dos órgãos e agentes da Administração Pública só poderem agir no exercício das suas funções com fundamento na lei e dentro dos limites por ela impostos.

Diferenças entre estas visões:

- desta forma, o princípio da legalidade é definido de maneira positiva e não negativa, é expresso aquilo que a Administração Pública pode ou deve fazer e não aquilo que está proibida de fazer.

- nestes moldes, todos os aspetos da atividade administrativa são abarcados e englobados, e "não apenas aqueles que possam consistir na lesão de direitos ou interesses dos particulares". O interesse público também deve ser visado, e não somente o dos particulares.

- assim sendo, a lei não consiste num limite da ação administrativa, antes no seu fundamento, isto é, a Administração não faz o que bem entende, mas antes aquilo que a lei lhe permite fazer – princípio da competência.

Evolução Histórica do Princípio da Legalidade

Na monarquia absoluta, com o Estado Polícia, o poder era absoluto e não era limitado quer pela lei quer pelos direitos subjetivos dos particulares, era uma situação de arbítrio manifesta ora na possibilidade de serem lesados direitos subjetivos dos particulares sem que haja soluções jurídicas para tal, ora na possibilidade de dispensar alguns particulares do cumprimento de deveres legais, ora na outorga por parte do rei de privilégios a certos particulares. Antes da Revolução Francesa, esta realidade sofreu uma alteração, na medida em que se veio a distinguir o Estado-soberano do Estado-fisco, o primeiro é isento de obedecer à lei, já o segundo para efeitos patrimoniais devia obediência à lei e as suas decisões ilegais podiam ser apreciadas a nível jurisdicional.

Com a Revolução Francesa, vem à tona o Estado de Direito Liberal, e com ele a submissão da Administração Pública à lei, que constitui um limite à ação administrativa, ou seja, é o princípio da legalidade na sua configuração negativa. E aqui "lei" significa lei formal, a lei aprovada pelo Parlamento em nome da Nação. Nesta fase, é para garantir os interesses dos particulares que se submete a Administração Pública à lei. O princípio da legalidade surge apenas como uma limitação da ação administrativa e não como o seu próprio fundamento neste período, uma vez que este foi marcado pela ideia de monarquia limitada, uma monarquia com legitimidade histórica, mas que a dada altura aceita limitar-se a favor duma soberania popular representada no Parlamento. Existem assim dois poderes do Estado autónomos e legítimos: o Poder Executivo liderado pelo rei com a tal legitimidade histórica e hereditária e o Parlamento com legitimidade democrática decorrente do voto popular. Assim sendo, a Administração pública depende hierarquicamente do executivo (rei), fazendo tudo que lhe for ordenado, exceto se for proibido por uma lei do Parlamento.

Síntese: no Estado Polícia (monarquia absoluta), a Administração Pública dependia inteiramente do rei, sem quaisquer limites legais, o fundamento da Administração era a vontade do soberano; no Estado Liberal (monarquia limitada), a Administração Pública ainda dependia do rei e da sua vontade, contudo era limitada pela negativa pela lei no interesse dos particulares, isto é, a Administração Pública podia fazer tudo que o rei lhe ordenasse, desde que não ofenda direitos dos particulares protegidos numa lei do Parlamento.

Com a evolução posterior da Monarquia Limitada para três outros regimes, o Princípio da Legalidade sofreu alterações de regime a regime.

Nos chamados regimes autoritários de direita, houve a substituição do Estado de Direito pelo Estado de Legalidade, que trouxe a ideia de a Administração Pública dever obediência à lei geral e abstrata decretada pelo poder, ou seja, a lei deixou de ser a expressão da vontade votada no Parlamento que representa a Nação. Os Governos passaram a fazer leis (decretos-leis), firmando assim uma subordinação da Administração Pública ao Governo, ao passo que antes consistia necessariamente na subordinação do Poder Executivo ao Parlamento. Além disso, é um princípio que veio proteger o Estado, somente a título subsidiário/reflexo é que os particulares também são protegidos. Ainda aqui, o princípio da legalidade consiste num limite à ação administrativa, mas em moldes relativos, e não absolutos.

Os regimes comunistas, mantiveram o princípio da legalidade, no entanto por meio de uma interpretação própria do partido único, entendiam o objetivo da construção do socialismo, isto é, as leis deviam ser interpretadas e aplicadas de acordo com as diretivas e instruções formuladas pelo partido único, a fim de construir o socialismo. É a legalidade socialista, não a fruto de uma interpretação puramente jurídica das leis mas sim daquela indicada e norteada pela direção do partido único com vista à construção do socialismo. O princípio da legalidade socialista não é um limite nem absoluto nem relativo da ação administrativa, mas sim um instrumento do poder administrativo ao serviço dos fins políticos constitucionalmente consagrados e definidos pelo partido único.

Por último, nos regimes democráticos de tipo ocidental, com o Estado Social de Direito, o princípio da legalidade sofreu algumas transformações no que diz respeito à sua mesma aplicação no Estado Liberal, apesar de alguma proximidade, o que é natural. A subordinação à lei por parte da Administração Pública foi reforçada pela ideia de subordinação ao Direito, ou seja, não há apenas um dever de obediência à lei, entendida como ordinária, há ainda o dever de obediência à Constituição, o Direito Internacional Público, os princípios gerais de Direito, os regulamentos em vigor, os atos constitutivos de direitos que a Administração Pública tenha praticado e os contratos administrativos que ela tenha celebrado (na medida em que constituem formas de vinculação da Administração Pública, equiparando à legalidade). Consistindo isto no Bloco Legal defendido pelo francês Maurice Hauriou, onde se incluem todas estas fontes mencionadas que vão muito mais além da simples lei ordinária. Nesta fase, o princípio da legalidade não procura somente a proteção dos direitos subjetivos e interesses legítimos dos particulares, como também a proteção dos interesses objetivos da Administração Pública e do Estado, há aqui uma proteção e garantia simultânea das normas aplicáveis no interesse dos particulares e da Administração. Aqui, a legalidade não é um limite à ação administrativa, mas sim o seu verdadeiro fundamento, uma vez que, o Poder Executivo deixa de ser um poder com legitimidade própria como era na monarquia, para ser um poder constituído que obtém a sua autoridade através da Constituição e da lei, logo a Administração Pública apenas pode agir se e na medida daquilo que a lei permitir. O Poder Executivo não pode invocar como fundamento da sua ação uma legitimidade monárquica, não pertence ao ditador nem ao partido único, mas sim deriva a sua existência e legitimidade na Constituição e na lei, e ainda na soberania popular, pelo que a lei é o fundamento da ação administrativa, e não um limite.

Conteúdo, Objeto, Modalidades e Efeitos do Princípio da Legalidade:

  • Conteúdo: no Estado Social de Direito, o princípio da legalidade não abrange apenas a obediência à lei no sentido formal ou material, mas sim a todo o bloco legal (Maurice Hauriou), isto é, à Constituição, lei regional, regulamento, direitos provenientes de contratos administrativos e atos constitutivos de direitos, princípios gerais de Direito e o Direito Internacional Público que vigora na ordem jurídica interna. Qualquer violação posta a cabo pela Administração Pública constitui ilegalidade.
  • Objeto: o princípio da legalidade tem por objeto todos os tipos de comportamento da Administração Pública, nomeadamente regulamentos, atos administrativos e contratos administrativos.
  • Modalidades:
  • Preferência de lei: consiste em que nenhum ato de categoria inferior à lei pode contrariá-la, sob pena de ilegalidade.
  • Reserva de lei: consiste em que nenhum ato de categoria inferior à lei pode ser praticado sem que haja fundamento na lei.
  • Efeitos:
  • Efeitos negativos: nenhum órgão da Administração Pública pode deixar de respeitar e aplicar as normas que vigoram, mesmo que seja ele o autor da norma em causa; um ato da Administração que num caso concreto viola a legalidade vigente é um ato ilegal e, por conseguinte, inválido.
  • Efeitos positivos: é a presunção de legalidade, ou seja, presume-se num primeiro instante que todos os atos praticados por órgãos da Administração estão conformes à lei, até que se venha eventualmente decidir que são ilegais. Apenas quando o tribunal administrativo declarar a ilegalidade do ato e anulá-lo é que se torna efetivamente ilegal, até lá, a sua legalidade é presumida. Disto resulta que, os atos administrativos mesmo sendo ilegais têm um caráter obrigatório à Administração Pública e aos particulares, até que sejam declarados como ilegais pelo tribunal.

Exceções ao Princípio da Legalidade

A doutrina maioritária entende que o princípio da compreende três exceções distintas: a teoria do Estado de Necessidade, a teoria dos atos políticos; o poder discricionário da Administração. No entanto, Freitas do Amaral defende que apenas a teoria do Estado de Necessidade constitui verdadeiramente numa exceção do princípio da legalidade.

A teoria do Estado de Necessidade diz que, em situações de verdadeira necessidade pública (guerra; catástrofe natural, estado de sítio), a Administração Pública, se for exigido pela situação, fica dispensada de seguir o procedimento legal estabelecido para situações normais, mesmo que isso pressuponha o sacrifício de direitos ou interesses de particulares, que depois serão indemnizados. O Estado de Necessidade é consagrado nos países democráticos e, constitui efetivamente numa exceção ao princípio da legalidade. Proveio da Roma Antiga, onde se dizia "necessitas non habet legem", que significa "em caso de necessidade não há lei".

Referente à teoria dos atos políticos, ela diz que os atos de conteúdo essencialmente político, que correspondem ao exercício da função política não são suscetíveis de recurso contencioso em tribunais administrativos. Para Freitas do Amaral não é correto afirmar que quando se praticam atos políticos não se devem obediência à Constituição e à lei, contudo não existem sanções jurisdicionais para tais atos, mas pode haver outras. Efetivamente, atos políticos não são anulados por tribunais administrativos, uma vez que estes tratam apenas de atos administrativos.

Quanto ao poder discricionário da Administração, Freitas do Amaral entende que é antes um modo especial de configuração da legalidade administrativa do que uma exceção à legalidade. Com efeito, poderes discricionários apenas existem quando a lei diz, e neles existem pelo menos dois elementos vinculados por lei (competência e o fim). Além disso, existem várias regras jurídicas que enquadram e condicionam o exercício do poder discricionário (obrigação de fundamentação; princípio da imparcialidade; princípio da igualdade; etc), pelo que não há qualquer exceção ao princípio da legalidade nos poderes discricionários.

Natureza e Âmbito do Princípio da Legalidade

Freitas do Amaral levanta esta questão: "A Administração Pública deve obediência à lei, no sentido amplo que atrás referimos, em todos os casos e manifestações típicas do poder administrativo, ou, pelo contrário, deve obediência à legalidade apenas quando esteja em causa o sacrifício de direitos ou interesses dos particulares?", face a isto ele distingue "administração agressiva" de "administração constitutiva" (prestadora de serviços).

Na Administração Agressiva, a Administração Pública surge como autoridade, que impõe sacrifícios aos particulares, "agride" os seus direitos e interesses ao proibir, nacionalizar, expropriar, dando ordens, revogando licenças e recusando autorizações. Nestas situações, no fundo, a Administração Pública está a agredir a esfera jurídica dos particulares e a sobrepor-se aos seus direitos e interesses por meio de sacrifícios.

Na Administração Constitutiva, a Administração Pública surge como prestadora de bens e serviços, nomeadamente no serviço público escolar, assegurando educação aos cidadãos, no serviço da segurança social, no serviço nacional de saúde, na conceção de subsídios à exportação, etc. Aqui a Administração não está a agredir a esfera jurídica dos particulares, mas antes a protegê-la, beneficiá-la e ampliá-la.

A doutrina divide na abrangência do princípio da legalidade relativamente a estas manifestações da atividade administrativa. Jesch entende que o princípio da legalidade abarca todas as manifestações da atividade administrativa, tanto agressiva como constitutiva, ou seja, tudo se resume àquilo que lei permite a Administração fazer. Já Wolf entende que o princípio da legalidade apenas abarca a administração agressiva, argumentando que para agredir a esfera jurídica dos particulares a Administração Pública só pode fazer aquilo que é permitido por lei, já para efetuar prestações no âmbito do desenvolvimento económico social a Administração pode fazer o que bem entender, desde que não viole nenhuma proibição legal.

Em Portugal, Esteves de Oliveira adotou a posição de Jesch, e Sérvulo Correia adotou a posição de Wolf.

Sérvulo Correia utiliza o art.199º/g) CRP como sustento da sua posição: este artigo fala sobre as providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico e social e a satisfação das necessidades públicas enquanto competência administrativa do Governo, no entanto sem fazer nenhuma alusão à lei, e outras alíneas do mesmo artigo fazem referência à lei, daí que Sérvulo Correia retira a conclusão que para a promoção do desenvolvimento económico e social e a satisfação das necessidades públicas (administração constitutiva), diferentemente da administração agressiva, não é necessário o princípio da legalidade como fundamento da ação administrativa, sendo suficiente apenas o respeito à lei como limite dessa mesma ação.

Freitas do Amaral, concordando com Jesch e Esteves de Oliveira, também entende que o princípio da legalidade cobre todas as manifestações da Administração Pública. Primeiramente, ele refuta a tese de Sérvulo Correia com o facto do art.199º/g) somente ser aplicável ao Governo, reduzindo bastante o seu alcance. Ele também entende que este artigo deve ser entendido conjuntamente com o princípio geral presente no art.266º/2 CRP, que submete todos os órgãos da Administração Pública à lei, isto é, o art.199º/g) não pode deixar de ser entendido subordinadamente ao art.266º/2, significando isto que Governo deve fazer o necessário para a promoção do desenvolvimento económico e social, mas dentro da ideia de submissão à Constituição e da lei.

Outras alíneas do art.199º CRP não aludem à lei, como é o caso da alínea d que fala sobre direção, superintendência e tutela, entretanto é impensável que estas atividades são postas a cabo sem a subordinação à lei, e isto só reforça a ideia de este artigo ser entendido conjuntamente com o art.266º/2 CRP, que estabelece indistintamente o princípio geral da legalidade.

Também é necessário ter em conta que mesmo na administração constitutiva podem ocorrer violações dos direitos e interesses dos particulares por parte da Administração Pública, estas violações não ocorrem somente em sede de administração agressiva, quando a Administração surge como autoridade. A Administração pode interpretar mal a lei e violar um direito subjetivo de natureza económico-social de um particular ou de uma empresa, pode recusar o reconhecimento de um direito ou dum interesse legítimo em um caso em que a lei o imponha, pode privar alguém de direitos já adquiridos, portanto, mesmo na administração constitutiva podem ocorrer violações de direitos ou interesses legítimos de particulares, o que pressupõe que o princípio da legalidade funcione em toda a sua plenitude.

A administração constitutiva nem sempre beneficia todos os particulares, e nem os beneficia de forma igual, as conceções funcionam de acordo com critérios seletivos, pois não há como subsidiar ou conceder créditos a todos, e os que mais precisam, é que são atribuídos, dentro das limitações financeiras que existem. Ora quem seleciona uns afasta outros, e os afastados podem sempre socorrer-se na lei, que serve como protetor.

Para funcionar como uma administração moderna, que presta bens e serviços, e que está empenhada no desenvolvimento económico e social, a Administração Pública, eventualmente precisa de impor a mobilização de certas pessoas individuais, expropriar terras, nacionalizar empresas, requisitar bens e direitos, instituir monopólios, etc. Ao reunir as condições para a promoção do desenvolvimento económico e social, a Administração Pública está simultaneamente a sacrificar direitos e interesses de particulares: ao expropriar terras, está a sacrificar o direito de propriedade de alguém, ao nacionalizar empresas está a sacrificar direitos de acionistas em relação a certas empresas, ao instituir monopólios está a sacrificar a liberdade de comércio de alguém e assim sucessivamente. Por conseguinte, a ideia da administração prestadora de serviços é indissociável da ideia de sacrifício de direitos e interesses de particulares.

Resumidamente, nas atividades da administração constitutiva, prescindir da submissão ao princípio da legalidade seria abandonar uma das regras mais importantes do Direito Administrativo, que consiste na de somente a lei pode definir o interesse público. O abandono desta regra seria a perda da legitimidade da atividade administrativa e também a perda de garantias eficazes da moralidade administrativa. Se o interesse público fosse definido pela Administração Pública, nunca mais certas ações da Administração seriam classificadas como crimes de corrupção, e nunca mais um ato administrativo seria considerado viciado por desvio de poder, uma vez que isto apenas acontece quando a Administração se afasta do interesse público que é definido por lei, ora se é ela mesma a definir tal interesse que prossegue, não há como qualificar atos como viciados por desvio de poder.

São estas as causas que, no entendimento de Freitas do Amaral, o princípio da legalidade administrativa deve cobrir não apenas a administração agressiva, como também a constitutiva. 

Bibliografia:
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Vol. II 

Mauro Marques, nº. 66582, subturma 15, Turma 2º.B

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