Princípio do aproveitamento do ato administrativo / Teoria dos vícios inoperantes
1. Introdução
1.1. Enquadramento geral
Através do ato administrativo (148ºCPA) (sendo definido como um "ato jurídico unilateral praticado, no exercício do poder administrativo, por um órgão da Administração ou por outra entidade pública ou privada para tal habilitada por lei, e que traduz a decisão de um caso considerado pela Administração, visando produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta" em AMARAL, Diogo Freitas do Curso de Direito Administrativo Volume II, 4ºedição, Almedina) a atividade administrativa tem um grande impacto na esfera jurídica dos particulares, e, face esse impacto, é necessário o ato administrativo respeitar pressupostos e requisitos legalmente impostos.
Acontece, no entanto, que nem sempre estas condições são respeitadas, o que pode desencadear uma situação de invalidade jurídica que se contrapõe à eficácia do ato.
Não obstante, sucedem situações em que, ainda que os atos administrativos sejam inválidos, podem ser aproveitados, e os efeitos da invalidade são afastados (teoria do aproveitamento do ato administrativo ainda conhecida como teoria dos vícios inoperantes).
Este princípio traduz situações em que não se justifica a anulação do ato administrativo, mesmo que padeça de um vicio de violação da lei ou forma em ocasiões que, colocando em causa o comportamento vinculado, o ato proferido não possa ser outro ou não possa ser menos lesivo do que o ato que se pretende anular. Subtrai-se que em casos onde a anulação do ato seja improdutiva por a execução do julgado determinar a prática de ato igual ao anulado, encontra-se justificado manter o ato mesmo que tenha vicio de violação da lei ou irregularidade (Tribunal Central Administrativo do Norte, num Acórdão de 17-01-2020, no proc.º n.º 00094/09.3BEPRT).
A anulação do ato trata-se de um desvalor na medida em que, não estando prevista outra sanção, o desvalor é o da anulabilidade. Esta consiste na cessação dos efeitos jurídicos do ato administrativo que esteja viciado por alguma ilegalidade devido a regras jurídicas, violação de princípios ou vícios de forma ou conteúdo.
A teoria não pretende a sanação ou supressão da ilegalidade, o seu objetivo é tornar inoperante a força de invalidade do vicio que o afeta, mantendo ainda assim o ato ilegal.
1.2. Consagração formal e análise
O princípio do aproveitamento do ato administrativo era já conhecido e aplicado pela doutrina e jurisprudência nacional mesmo antes de ser formalmente expresso no Código do Procedimento Administrativo, facto que só veio a ocorrer face a alteração no mesmo diploma no ano de 2015, obtendo consagração no artigo 163º/5.
Além da constatação no Código do Procedimento Administrativo, este princípio encontra reforço igualmente na Constituição portuguesa, designadamente, nos artigos 267º/5 CRP e 266º/1 CRP, na medida em que estes se relacionam com a ideia da desburocratização e racionalização dos meios utilizados na atividade administrativa, bem como a prossecução de uma atividade eficiente latente ao interesse público, em razão de poder surgir uma ocasião onde seja necessário atuar de certa forma colidindo com regras e princípios de forma a conseguir chegar a uma solução mais apropriada.
Com o surgimento do artigo 163º/5 CPA, passou a existir a consagração legal da obrigação de não anulação do ato com vicio quando se encontrem em causa os pressupostos delimitados nas alíneas do mesmo artigo.
Passando a uma análise ao regime legal do princípio do aproveitamento do ato, e começando pela sua primeira alínea a) ("O conteúdo do ato anulável não possa ser outro, por o ato ser de conteúdo vinculado ou a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível"), esta dita a situação em que o caso concreto permite identificar apenas uma solução como a legalmente concebível, por não ser possível atingir alguma outra decisão. A alínea b) ("O fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via"), por sua vez, enuncia as situações em que há violação procedimental ou formal, encontrando-se os valores infringidos exigidos a serem garantidos pela "outra via", de maneira que a ilegalidade não tenha qualquer interferência com a decisão final. A última alínea, c) ("Se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo"), finalmente, concerne sobre o facto de a Administração, mesmo sem o vício, chegar à mesma decisão, concluindo-se, assim, que o vício não é considerado um fator deliberativo do conteúdo do ato.
2. Doutrina e Jurisprudência
2.1. Ratio do princípio administrativo
A doutrina maioritária sustenta a ratio do princípio do aproveitamento do ato administrativo em três princípios da atividade administrativa (princípio da economia dos atos públicos, princípio da boa administração e princípio do interesse público):
- Princípio da economia dos atos públicos- devem tomar-se eficientemente decisões estritamente necessárias que digam respeito ao interesse público;
- Princípio da boa administração- 5ºCPA, na medida em que a administração deve pautar-se por critérios de eficiência, economicidade e celeridade, devendo organizar-se de modo a aproximar o serviço das populações por forma não burocratizada;
- Princípio do interesse público- prossecução dos interesses públicos, único fim da administração pública.
2.2. Âmbito de aplicação do regime legal
Tem sido discutida pela jurisprudência e doutrina o âmbito de aplicação do regime legal estabelecido no atualizado CPA. Significa isto que, o artigo 163º/5 CPA só se aplica a atos administrativos vinculados ou também a atos administrativos discricionários.
É necessário analisar a jurisprudência nacional para entender o âmbito (a este respeito: Supremo Tribunal Administrativo, num acórdão de 13-04-2004, no proc. n.º 040245 e Supremo Tribunal administrativo, num acórdão de 23-05-2006, proc. n.º 01618/02 (aplicação somente a atos vinculados); Supremo Tribunal Administrativo, num acórdão de 11-10-2007, no proc. n.º 01521/02 e Supremo Tribunal Administrativo, num acórdão de 07-02-2002, proc. n.º 046611 (aplicação a atos discricionários).
É possível concluir que a jurisprudência diverge e não é colocado em causa a relevância da distinção dos atos administrativos vinculativos e atos administrativos discricionários, entendendo-se que o artigo 163º/5 CPA se aplica lato sensu a estes dois tipos de atos.
2.3. Doutrina negativista do 163º/5 CPA
Apesar de se encontrar consagrado o princípio do aproveitamento do ato administrativo, a realidade é que muita da doutrina discorda deste princípio, não nos permitindo encontrar consenso no que toca a esta matéria.
Os negativistas, ou os que contestam este princípio, opõem-se a este tendo os vícios formais como referência, admitindo que a admissão deste princípio conduz a um descrédito do vicio de forma à margem da lei.
Defendem que a formalidade do procedimento administrativo tem relevância no direito administrativo, uma vez que confere a aplicabilidade de valores e princípios tendo em conta a prossecução de um procedimento para atingir um determinado fim estando em conformidade com os princípios de direito. O procedimento administrativo tem um valor que deve ser prezado.
Não só o Código do Procedimento Administrativo dita este procedimento, como devemos atender ao seu destaque na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia no seu artigo 41º (onde se evidencia a importância das formas no que toca ao Direito Administrativo).
Coloca-se em causa, com este princípio, a importância do procedimento, uma vez que se considera que as invalidades administrativas podem ser ultrapassadas.
O professor Vasco Pereira da Silva admite que a norma do 163º/5 é inconstitucional uma vez que esta primeiramente diz haver regime geral de anulabilidade e nulidade sendo anuláveis todos os atos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou outras normas jurídicas aplicáveis, para cuja violação não se prevê sanção e consequentemente estabelece regras relativas aos atos anuláveis.
Quanto à alínea a), um ato de conteúdo vinculado não existe, por mais vinculados que sejam, têm sempre aspetos discricionários. O legislador, ao evidenciar que "a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível", faz-nos deparar com uma situação de redução da discricionariedade a zero, dado que as circunstâncias do caso concreto só determinam uma situação possível e uma vinculação. Esta situação corresponde a uma mistura de poder vinculado e discricionário, nunca havendo atuações integralmente vinculadas.
Quando à alínea b), encontramo-nos perante uma discrepância, uma vez que existe uma norma que dita que é necessário haver procedimento para se chegar a um fim e aqui deparamo-nos com uma desvalorização da exigência procedimental legalmente prevista. A finalidade do procedimento é descobrir o fim que tem de ser alcançado, não é possível, não recorrendo ao procedimento, alcançar o fim desejado.
Quanto à alínea c) do artigo 163º/5 CPA, o professor questiona-se sobre o facto de ser possível saber se o ato praticado sem o vicio poderia ser praticado com o mesmo conteúdo uma vez que não se sabe qual é o conteúdo do ato, porque dado não se ter realizado o procedimento que determinaria o conteúdo do ato administrativo.
A norma é considerada inconstitucional por violar o princípio da razoabilidade (artigo 8º CPA).
O professor considera que não se devia superar o procedimento em razão de valores que correspondem à desfiguração da autonomia do direito administrativo.
Contrapondo a esta doutrina, temos o argumento de que o procedimento se trata de um instrumento não tendo a capacidade de se sobrepor ao interesse material que o mesmo pretende executar.
Bibliografia/Consulta:
AMARAL, Diogo Freitas do Curso de Direito Administrativo Volume II, 4ºedição, Almedina
CAUPERS, João Introdução ao direito administrativo, 10ªedição, Âncora editora
AROSO DE ALMEIDA, Mário Teoria Geral do Direito Administrativo, 10ªedição, Almedina
PEREIRA DA SILVA, Vasco,
apontamentos das aulas teóricas
Sabrina Oliveira,
66300.