Psicopatologia da Vida Quotidiana do Direito Administrativo
O Direito Administrativo tem por berço eventos traumáticos que deixaram sequelas evidentes. Esta "infância difícil" manifesta-se até aos dias de hoje. Cabe a este artigo analisar e estudar o "estado psíquico" do Direito Administrativo, e como tais acontecimentos não podem ser esquecidos pois influenciam os dias de hoje.
A Psicopatologia é a ciência que estuda as doenças mentais. Será correto personificar o Direito Administrativo como um paciente que necessita de tratamento? Em certos aspectos, sim. Devido à terrível infância do Direito Administrativo, sendo dois eventos em especial desenvolvidos em diante, Sigmund Freud considera que graves consequências foram geradas. Consequências essas sendo, principalmente, as manifestações patológicas de comportamento que se "arrastaram" até agora: a chamada psicopatologia da vida quotidiana. O desenvolvimento do Direito Administrativo foi posto em causa e disso não nos livramos facilmente. É, assim, necessário colocá-lo sujeito a um teste de psicanálise cultural (citando Lacan, defensor deste método).
O primeiro evento traumático relaciona-se com a atuação da justiça administrativa. Em 1789, após a Revolução Francesa, tendo subjacente o Constitucionalismo Moderno, os tribunais são proibidos de controlar a administração. Tal ação foi vista como preventiva, garantindo, à priori, divisão de tribunais e administração. Tendo em conta o contexto histórico, torna-se pouco lógico. Era uma época cuja separação de poderes e as ideias iluministas predominavam; "aquilo que se estava a constituir, em termos de relacionamento entre administração e justiça, era a promiscuidade entre o poder administrativo e o poder judicial" como afirma o Professor Vasco Pereira da Silva.
Logo neste primeiro evento, o Direito Administrativo é "traído". A revolução francesa assentava, principalmente, no princípio da separação de poderes, os revolucionários lutavam para tal. No entanto, após estarem no poder, não colocam em prática os pressupostos defendidos. A relação administração e justiça foi posta em causa, sendo esta primeira quebra o que caracteriza o pecado original do Contencioso Administrativo. Face a isto, a administração decide contrariar ainda mais o princípio da separação de poderes e criar um juiz privativo. Estes analisavam-se a si mesmos, criando-se (quase) uma nova definição de separação de poderes: que a administração e o juiz não se podem confundir. O juiz administrativo não é um verdadeiro juiz. Acaba por ser uma realidade paradoxal, mas não se trata nada mais do que um mecanismo de defesa que a administração criou para lidar com a sucessiva traição, invés de ficaram de braços cruzados.
Com a Constituição Francesa de 1976, os tribunais administrativos são integrados no poder judicial mas com limitações. De 1976 até 1989, até à revisão constitucional, a sua existência era facultativa. Até à 2004, os juízes administrativos não possuíam o mesmo poder que os restantes juízes, apenas se limitavam aos poderes administrativos e aos temas administrativos. Os juízes ditos judiciais estavam proibidos de condenar a administração. Esta clara e longa divisão causa efeitos até hoje: por exemplo visível na autocontenção judicial. Existe uma espécie de inibição ao condenar a administração, como não gozaram deste poder durante muito tempo, agora que gozam têm dificuldade em exercê-lo.
O segundo evento traumático toma acontecimento em 1873, o infeliz Caso Blanco. Pouco após da criação dos tribunais administrativos, um comboio descarrila atropelando um grupo de crianças. Destacamos Agnes que ficou com danos permanentes devido a tal infortúnio. Os pais tentaram pedir uma indemnização à empresa pública a que o comboio pertencia, no entanto o Tribunal de Bordéus recusa. Este invoca que tal assunto é fora da sua competência, cabia à administração pois estava em causa um entidade administrativa. Acrescenta que mesmo se fosse da sua competência, não existia norma aplicável, apenas se a empresa fosse privada. Face a esta resposta, o pais tentam a justiça administrativa. Maire D´river, Presidente da Câmara, dá a mesma resposta: não possui a competência para o fazer pois não havia ato administrativo nem regime aplicável. O ato foi involuntário e fora do seu controlo, ele apenas controlava os atos de caráter administrativo, para não falar do facto que nos encontrávamos num tempo positivista, "despachando" então o problema para o Tribunal dos Conflitos. O Tribunal afirma o mesmo: que não existe norma aplicável. Devido a este infeliz comunicado, surge a chamada Decisão de 1873: Esta vai dizer que quem é competente para decidir é a jurisdição administrativa, e acrescenta que não há nenhuma norma aplicável e que por isso é necessário criar um Direito Administrativo - conjunto de normas e ramo de Direito autónomo que responsabilizasse a Administração Pública.
É razoável afirmar que o Direito Administrativo passou por muito, sem sequer ter nascido. A base do seu nascimento é a negação de responsabilidade civil a uma criança, o que vendo hoje é inadmissível. No entanto, este facto é insociável para a compreensão do contexto atual. O referido até agora pode ser entendido como o "desabafo" do próprio Direito Administrativo, encarando os dois acontecimentos como os seus pai e mãe, porque foram estes que o deram origem.
A psicanálise destes traumas reflete-se hoje em certos advogados que que normalmente não pedem a condenação da Administração, limitando-se a pedir a anulação de atos ilegais, sem grande fundamentação. Observa-se igualmente na própria conceção do Direito Administrativo, que terá uma construção autoritária equiparando-se ao direito da polícia, como afirma o Professor Vasco Pereira da Silva. Havendo uma denominada "Administração Agressiva", pois apenas se limita ao domínio policial, era uma "mão invisível" que em pouco mexia.
Ainda neste registo das consequências impactantes, inclui-se o problema da responsabilidade civil da Administração, que é uma realidade causadora de incômodo, pelos motivos óbvios. O direito da responsabilidade civil era marcado por uma esquizofrenia que distinguia os atos de gestão pública (poder administrativo), dos atos de gestão privado (poder judicial, direito privado). Esta esquizofrenia na responsabilidade administrativa existia/existe pois não se sabia qual era o tribunal competente, nunca se sabia como qualificar (juridicamente). Apesar de desaparecido em 2004 (com a Lei nº 67º/2007, as disposições de DA, o critério de Marcello Caetano, CPA,...) ainda hoje há um domínio de obscuridade.
Tendo em conta dito, é natural o receio da própria Administração no momento das suas atividades. O que é mais desejável, é que tais acontecimentos não se repitam. O Direito Administrativo sofre uma vitória agridoce, o seu crescimento provem de tragédia mas o seu desenvolvimento era uma luta para combater essas tragédias. A Administração não é intocável, simplesmente requer "cuidados" específicos, tendo em conta o que passou.
Bibliografia:
- Transcrições de aula teórica de Direito Administrativo I do Professor Vasco Pereira da Silva (26/09/2022).
Raquel Ponge, Nº66220