Resolução de um caso prático
Preocupado com os fenómenos meteorológicos que têm tido lugar por todo o país, o Primeiro-Ministro português ordenou ao Ministro do Ambiente que tomasse as necessárias providências para que os episódios destes últimos dias não se repetissem.
Nesse sentido, este ministro decide ordenar à Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC) que reforce o pessoal no terreno nestas situações a fim de evitar um número tão elevado de desalojados.
Passada uma semana, numa recorrência de chuvas intensas, os agentes da proteção acabam por agir negligentemente não tendo evitado uma catástrofe na área de Lisboa. Por essa razão, é proposto em sede de Conselho de Ministros, onde se encontravam presentes o Ministro das Infraestruturas, Ministro da Saúde, Ministro da Administração Interna e o Primeiro-Ministro que os operadores não fossem responsabilizados, absolvendo-os de qualquer processo que fosse apresentado. Esta decisão é aprovada por unanimidade pelos membros do Governo.
A fim de otimizar a gestão da Proteção Civil, e evitar que outro desastre ocorra, o Ministro do Ambiente decide delegar esse poder à Secretária de Estado da Proteção Civil. Aquele, porém, continuou a exercer os poderes que delegou a este.
Estamos perante um caso prático que apresenta vários problemas de organização administrativa.
Primeiramente, o Primeiro-Ministro ordena ao Ministro do Ambiente que este tome as devidas ações. Esta "ordem" é extremamente questionável já que não existe uma relação de hierarquia entre os membros do Governo. É certo que os ministros estão politicamente dependentes do Primeiro-Ministro, pois este os nomeia, mas não são seus subalternos. E é também verdade que este último tenha mais importância política, mas se, neste caso, o Ministro do Ambiente não cumprisse com esta ordem do Primeiro-Ministro, não haveriam quaisquer consequências jurídicas ou administrativas para aquele, mas eventualmente apenas políticas. Assim, seria mais prudente ao Primeiro-Ministro aconselhar ao Ministro do Ambiente, em vez de o ordenar.
Seguidamente, há uma nova ordem, mas neste caso do Ministro do Ambiente à ANEPC. Esta é uma autoridade nacional em matéria de emergência e proteção civil de administração direta do Estado. A administração direta é a forma de administração mais participativa por parte do Estado, em que são os seus órgãos que os gerem, através dos poderes de tutela, fiscalizando a legalidade e mérito destas entidades, superintendência, emitir diretrizes e objetivos, como exerce poderes de direção, emanando comandos individuais e concretos e instruções aos quais o subalterno deve obediência. Mas qual é o órgão do Estado que exerce esses poderes sobre a ANEPC? Segundo o art.º 16/2 alínea c) do Regime de Organização e Funcionamento do XXIII Governo Constitucional (Decreto-Lei 32/2022), é o ministro da administração Interna que exerce estes poderes de direção sobre esta entidade.
Logo, o Ministro do Ambiente nunca poderia exercer poderes direção à Proteção Civil. Os órgãos da mesma pessoa coletiva têm competências, poderes funcionais atribuídos a cada órgão, enquanto as pessoas coletivas têm atribuições, fins que têm prosseguidos pelas mesmas, que são enumerados no ato que as constituiu. Quando um órgão da mesma pessoa coletiva extravasa a sua competência, exercendo a de um outro órgão, estamos perante uma incompetência relativa, anulável nos termos do art.º 163/1 do Código de Procedimento Administrativo (CPA). São anuláveis todos os atos que não correspondem à aplicação da lei, cuja violação não tenha prevista outra sanção, isto é, a nulidade, prevista nos art.º 161 do CPA. Nulos são os atos praticados que extravasam as atribuições das pessoas coletivas, tratando-se de uma incompetência absoluta, ferida de nulidade à luz do art.º 161/2 al. b). Contudo, no Governo, cada ministro, apesar de ser um órgão, tem atribuições e não apenas competências. Por essa razão, a ordem do Ministro do Ambiente é uma incompetência absoluta, nula, que não produz qualquer tipo de efeitos (162/1 CPA), não tendo de ser respeitada pela ANEPC. Esta pode ser invocada a todo o tempo, por qualquer interessado, como estabelece o art.º 162/2 do CPA.
Uma ordem, para ser vinculativa, necessita de cumprir com três requisitos, estabelecidos constitucionalmente. Um requisito subjetivo, a ordem tem de provir de um legítimo superior hierárquico, um objetivo tem de ser relativa a matéria de serviço, e um formal que estabelece que tem de cumprir com a forma prevista para tal. Neste caso a matéria de serviço e o requisito formal foram ambas cumpridas, mas não adveio de um superior hierárquico já que não se trata, como vimos, do órgão que tem competência para ordenar.
Posteriormente é tomada uma decisão em sede de Conselho de Ministros. O Conselho de Ministros é um órgão particular, já que é um órgão composto por órgãos. Segundo o professor Vasco Pereira da Silva, este encarrega-se sobretudo de questões de coordenação e definição de política geral do Governo. É composto pelo Primeiro-Ministro que o preside, e pelos restantes ministros.
Para um órgão coletivo poder deliberar é necessário verificar a existência de quórum, ou seja, é necessário verificar se estão presentes os membros estabelecidos pela lei. Apesar da existência de um quórum geral estabelecido no art.º 29/1 do CPA, o art.º 73 da Lei do Governo, anteriormente mencionada, estabelece uma base legal especifica para a observância do quórum nas deliberações do Conselho de Ministros. Este prevê que basta a presença da maioria dos membros com direito a voto para as deliberações serem consideradas válidas, sendo que no caso da ausência de quórum as decisões tomadas são consideradas nulas à luz do art.º 161/2 al. h) do CPA. Neste caso, apenas estavam presentes neste Conselho de Ministros quatro membros, de um total de 17 com direito a voto (Primeiro-Ministro e ministros, como prevê o art.º 73/3 da mesma lei). Verificamos, então, uma ausência de quórum deliberativo, concluindo que esta deliberação é nula, pela lei 161/2 al. h).
Se esta deliberação tivesse realmente entrado em vigor apresentaria sérios problemas. Primeiramente porque não é da competência do Conselho de Ministros a decisão de absolvição de qualquer pessoa. Esta competência é apenas dos Tribunais, órgão de soberania. Todavia, aqui não estaríamos apenas perante uma incompetência absoluta, no exercício de um ato que ultrapassa as atribuições de uma pessoa coletiva, estamos perante uma usurpação de poderes. A usurpação de poderes ocorre quando um ato é de uma incompetência tal que é posto em causa o princípio da separação de poderes, constitucionalmente estabelecido no art.º 2. Quando um órgão do Governo, órgão de soberania, toma decisões que são da atribuição dos tribunais, outro órgão de soberania, decisão essa que põe em causa leis constitucionais, estamos perante uma clara violação do princípio da separação de poderes. O princípio da separação de poderes tem duas dimensões. Uma positiva que prevê que as funções do Estado são distribuídas pelos órgãos mais adequados, e uma negativa que previne a concentração e do abuso de poder, que poderia estar em causa nesta hipótese pratica. Assim, para haver um desrespeito a este princípio tem de ser relativo a estas duas dimensões. Estes atos violadores são considerados igualmente nulos pelo art.º 161/1 al. a) do CPA.
Posteriormente é realizada uma delegação de poderes. A delegação de poderes é um ato administrativo que torna competente um órgão ou agente que não o era em relação a certa matéria.
Para estarmos perante uma delegação de poderes é necessário que sejam cumpridos três requisitos essenciais, previstos no art.º 44 do CPA. O primeiro é da existência de uma lei de habilitação para essa delegação, ou seja, a lei tem de expressamente prever a faculdade de o órgão poder delegar os poderes noutro. Tendo em conta que os secretários de Estado são adjuntos dos respetivos ministros, o art.º 44/3 do CPA é uma lei habilitadora já que permite aos órgãos competentes delegarem aos seus adjuntos, todavia, a Secretária da Proteção Civil não é adjunta do Ministro do Ambiente, mas sim do Ministro da Administração Interna, como estabelece o art.º 3/5 da Lei 32/2022. Por esta razão, não podemos concluir que este requisito tenha sido cumprido.
Tem, também, de haver um ato de delegação, em que esta é concretizada, permitindo-lhe a prática dos atos delegados.
Finalmente, é necessário que esta delegação seja cumprida entre um órgão normalmente competente para decidir na determinada matéria a ser delegada e um órgão ou agente a quem esta é delegada. Apesar de tanto o Ministro como a Secretária de Estado serem órgãos membros do Governo, e de este último ser um órgão particular já que todas as suas competências são delegadas, não era da competência normal do Ministro do Ambiente a direção da Proteção Civil, e, por isso, este nunca poderia delegá-la a qualquer que fosse o órgão ou agente.
Não estando preenchidos os pressupostos necessários para esta delegação de poderes, esta não produz efeitos, e, por isso, a Secretária de Estado da Proteção Civil não pode exercer nenhum dos poderes que foram objeto.
Mas se esta delegação tivesse sido bem-sucedida, poderia o órgão delegante exercer os poderes delegados na mesma? A doutrina diverge.
O professor Paulo Otero defende que sim, o órgão delegante pode continuar a exercer livremente os seus poderes. Este defende a teoria da ampliação, a de que todos os órgãos delegados têm, à partida, as competências que lhe são delegadas, e estas são desbloqueadas pelo ato da delegação. Diz o professor que esta é a única forma que a competência é conferida na lei, já que o órgão delegante pode emitir diretrizes ou instruções vinculativas ao delegado sobre a forma como deve exercer os poderes delegados, significando isso que o órgão delegante pode sentar-se na secretária com o órgão delegado e fazer tudo por ele, apenas este tendo de assinar posteriormente. O professor conclui que isto não faz sentido e que, por isso, o órgão delegante pode exercer esse poder.
Já o professor Freitas do Amaral defende a teoria da transferência do exercício, em que uma parte da competência do órgão delegante é transferida para o órgão delegado, sendo este o responsável por esta matéria delegada. Diz que não faz sentido que um órgão delegue um poder e depois continue a exercê-lo, não parecendo prático que dois órgãos possam exercer a mesma competência juntamente.
Uma das grandes falhas apontadas à tese do primeiro professor é a de que se assim fosse verificar-se-ia um esvaziamento do instituto da avocação. Esta está prevista no art.º 49/2 do CPA, e designa o poder do órgão delegante trazer para si novamente os poderes delegados. Tendo isto em conta, concluo que a teoria da transferência do exercício é a mais adequada e, por isso, o ministro que delega ao secretário de Estado não pode depois exercer esses poderes sem antes avocar (49/2 CPA), anular ou revogar (50 al. a) do CPA) a delegação de poderes.
BIBLIOGRAFIA
1- AMARAL, Diogo Freitas, "Curso de Direito Administrativo", Vol. I, Almedina, 4.ª Edição, 2015.
2- ANTÓNIO, Isa, "Manual Teórico-Prático de Direito Administrativo", Almedina, 3.ª Edição, 2021.
3- OTERO, Paulo, "A competência delegada no Direito Administrativo Português", AAFDL, 1ª Edição, 1987.
4- Apontamentos das aulas teóricas e práticas de Direito Administrativo I 2022.
Caso prático e resolução da autoria de Beatriz Abreu, nº 66361