Resolução do Caso Prático 1.5. – Livro de Casos Práticos do Prof. Paulo Otero
''Grupo I
Imagina que, através de decreto-lei, foi criada uma Autoridade de Resolução de Conflitos de Arrendamento (ARCA), enquanto serviço da administração direta do Estado, inserida na Presidência do Conselho de Ministros, dotada de mera autonomia administrativa, sendo dirigida por um diretor-geral nomeado pelo Primeiro-Ministro.
1. Poderá a lei conferir à ARCA o poder de resolver conflitos entre o locatário e o locador, sobre o montante de rendas?
2. Pode o decreto-lei em causa ser objeto de apreciação parlamentar ao abrigo do artigo 169º CRP?
3. Poder-se-á a ARCA configurar, ao abrigo de um poder de auto-organização, como uma autoridade administrativa independente?
4. O diretor-geral da ARCA deve obediência a uma ordem do Primeiro-Ministro que atribua natureza facultativa à execução das decisões dos tribunais?
5. Se alei conferir à ARCA o poder de revogar atos dos municípios que determinem aumento de rendas de habitações municipais superiores ao valor máximo legalmente fixado, pode essa norma ser desaplicada pela ARCA?
6. (...)
7. Será que a lei pode conferir aos tribunais de comarca o conhecimento da legalidade e do mérito dos atos praticados pela ARCA?
8. Se o diretor-geral da ARCA tiver sido designado pelo Conselho de Ministros, sem que o assunto constasse da ordem do dia, após uma votação de recolheu a maioria simples dos votos, será a nomeação válida?
1.
Toda a administração envolve a implementação de tarefas - a Administração Pública, ao visar a satisfação das necessidades coletivas, resolve uma multiplicidade de tarefas que objetivam alcançar o propósito referido.
A Administração Pública tem diversas tarefas: recolha e tratamento de dados (tem haver com o facto de existir uma tecnicidade crescente de matérias faz com que, quem tem a confirmação, tem o poder efetivo; a administração pública tem uma inegável vantagem face ao parlamento e aos tribunais, ampliada pela reserva constitucional de iniciativa legislativa da proposta de lei do OE, fazendo inverter a relação de controlo ou, pelo menos, condicionando-a fortemente), previsão e antecipação de riscos (vivemos numa sociedade de risco e, aqui, a Administração Pública mostra-se permeável às temáticas da prevenção e da minimização dos riscos públicos, submetendo os diversos domínios de atividade a regulação e a controlo; cabe à Administração prever, antecipar e prevenir riscos, informando, orientando e influenciando condutas dos cidadãos, acabando essa atividade informativa por comportar novas formas de ingerência ou intromissão na esfera da liberdade; as referidas previsões têm como base estudos técnicos e científicos, com certa realidade factual), regulação ordenadora (a Administração Pública desenvolve uma tarefa decisória que se traduz na regulação ordenadora e conformadora de tais situações ou de anteriores decisões jurídicas), execução de anteriores decisões (a Administração Pública executava a vontade geral; hoje em dia, a AP pode executar direitamente a CRP, atos de direito Internacional Público, de direito da União Europeia, do poder judicial, do próprio poder político, envolvendo cada uma destas atuações algum grau de autonomia; a AP tem um papel ativo na determinação interpretativa do seu sentido), controlo da atuação (através da fiscalização, por iniciativa própria, ou por pedido de terceiro, averiguando a validade, a conveniência ou a oportunidade de ações ou omissões).
A ARCA vem enquadrar-se, na ótica do Prof. Paulo Otero, em duas tarefas do Estado: a previsão e antecipação dos riscos e a regulação ordenadora. A administração direta do Estado é realizada pelo próprio Estado, feita pelos serviços do Estado português, sob direção do Governo, sendo regida pela Lei nº4/2004, de 15 de janeiro.
A criação de serviços da administração direta do Estado deve, ao abrigo do 24º/1 da LAD, ser aprovada por decreto regulamentar. Nos termos do artigo 26º/2 LAD refere que não podem ser criados serviços cujas missões já sejam prosseguidas por serviços já existente.
Pelo artigo 112º/2 CRP, o decreto-lei tem valor igual à lei e, pelo nº6 do mesmo artigo, é o regulamento do Governo reveste a forma de decreto regulamentar.
Penso que aqui a questão é que: o Governo realiza todos os passos, de forma correta, para a criação da ARCA, apenas não reveste a forma correta. O Governo faz decretos-leis apenas nos termos do 198º/1 CRP. Assim, estamos perante um caso de usurpação de poderes, que é uma invalidade, que acarreta a nulidade, nos termos do artigo 161º/2, a) CPA, uma vez que é violado o princípio da separação de poderes (consagrado no artigo 2º CRP), uma vez que há uma interferência do poder executivo no poder legislativo.. Não estamos perante um caso de incompetência porque o Governo fez tudo para criar a ARCA
2.
O artigo 169º da CRP vem dizer que os decretos-leis podem ser submetidos à apreciação da AR. Todavia, no nº1, há uma exceção: quando não são da matéria exclusiva do Governo (nº1).
Não estamos perante um caso que seja reserva absoluta (164º CRP), ou reserva relativa (165º CRP) da Assembleia da República.
Deste modo, como a ARCA tem haver com o funcionamento do Governo, nos termos do artigo 198º/2 CRP, não pode ser submetido à apreciação da Assembleia da República.
3.
A administração direta é realizada pelo próprio Estado, pelos serviços do Estado português, sob direção do Governo - há uma relação de hierarquia, nos termos do artigo 199º, d), 1ª parte da CRP.
A administração independente corresponde a entidades criadas pelo Estado, sujeitas a regulação autónoma independe (total independência), como é o caso das entidades reguladores, como por exemplo: o Banco de Portugal, CMVM, ANACOM.
Deste modo, a ARCA não pode ser configurada como uma autoridade administrativa independente porque, ao existir uma relação de hierarquia (com poder de direção do superior hierárquico, e dever de obediência do subalterno), sendo que apesar da auto-organização, não há total independência, por todas as implicações que a relação hierárquica tem adjacentes.
4.
Na independência do órgão executivo supremo face à lei, conferindo-se-lhe um espaço próprio e autónomo de decisão política, reside o cerne inovatório de uma conceção alternativa relativa a uma administração independente do legislativo, verificando-se que a restante administração se encontra subordinada à vontade política do órgão de topo do executivo e/ ou à vontade política do legislador. Após várias ideias de autores como Kant, Montesquieu, Locke e Rousseau, é no século XX que se desenvolve uma Administração Pública politicamente autónoma do poder legislativo, sem possuir uma integral dimensão executiva da lei - esta ideia vem consagrada no artigo 18º/1 CRP, que vem vincular as entidades administrativas à aplicabilidade direta dos preceitos constitucionais, o que permite o exercício de uma atividade não executiva da lei, bem como no artigo 199º, g) CRP, que vem habilitar o Governo a desenvolver uma atividade administrativa diretamente fundada na CRP.
No caso em específico, quando há poder de direção, estamos perante uma relação hierárquica, na qual o superior hierárquico tem poder de direção, enquanto que os subalternos estão sujeitos ao dever de obediência. Neste contexto, é importante ressalvar a ideia de que existe um direito de respeitosa representação, que corresponde ao direito de os subalternos exigirem aos superiores para passarem a norma a escrito, sendo que corresponde a uma forma de desresponsabilização.
O primeiro-ministro é o Presidente do Conselho de Ministros, ao abrigo do artigo 191º/2 e 3 CRP. Neste seguimento, é possível afirmar que estamos perante uma estrutura hierarquizada [20º/1, a) LAD; 21º LAD], pelo facto de o diretor-geral da ARCA dever obediência a uma ordem do Primeiro-Ministro, o que faz com que o diretor-geral tenha de obedecer a qualquer ordem do Primeiro-Ministro. Segundo o princípio da separação de poderes, consagrado no artigo 2º da CRP, cada poder deve agir dentro do seu âmbito, logo o poder executivo não pode intervir no poder judicial - caso em que estaríamos perante uma usurpação de poderes e, consequentemente, uma inconstitucionalidade.
Assim sendo, a opção do diretor-geral é proceder ao pedido de passar a norma a escrito, de modo que seja desresponsabilizado. (é aqui preciso referir que o Professor Paulo Otero defende que o dever de obediência se mantém mesmo quando a ordem é inconstitucional).
5.
Os municípios têm a competência de determinar o aumento de rendas de habitações municipais superiores ao valor máximo legalmente fixado.
Ao abrigo do artigo 169º/1 CPA, pode ser objeto de revogação pelo órgão competente - como a ARCA não é competente nesta matéria, não tem o poder de revogar.
Revogar este ato iria violar o princípio da justiça. Assim, podemos concluir que não é possível proceder à revogação de atos, uma vez que não se podem revogar os atos e, por isto, não podem também desaplicar uma norma para a qual não são competentes, nos termos do artigo 169º/1 CPA.
7.
Um modelo de Administração territorializada e fechada não se coaduna com as exigências da vida contemporânea, envolvendo a abertura de fronteiras e dos espaços económicos, o desenvolvimento do comércio internacional e a progressiva aceleração do movimento de circulação de pessoas, tudo isto numa sociedade mundial do risco. Num crescente processo de mundialização, o Estado mostra-se incapaz de garantir a segurança e a satisfação de necessidade de pessoas coletivas transnacionais, daí ser tão importante que existam estruturas administrativas nos Estados, que permitam a troca de informação entre si.
Nos termos do artigo 212º/3, são os tribunais administrativos e fiscais o julgamento de ações relacionadas com litígios emergentes de direito administrativo, e tal competência está especificada no artigo 4º do ETAF,
Neste sentido, a lei não pode conferir aos tribunais de comarca o conhecimento da legalidade e do mérito dos atos praticados pela ARCA, uma vez que a consequência seria a incompetência absoluta em razão de matéria - 96º, a) CPC.
8.
O artigo 25º do CPA diz que a ordem do dia de cada reunião é estabelecida pelo presidente e deve incluir os assuntos que para esse fim lhe forem indicados por qualquer vogado. Neste sentido, o assunto deve constar na ordem do dia, sob pena do artigo 163º/1, por violação da norma jurídica que se devia aplicar acerca da ordem do dia.
Para completar, o artigo 32º do CPA diz que as deliberações devem ser tomadas por maioria absoluta dos votos dos membros presentes na reunião (nº1), sendo que o que se verifica no presente caso é a maioria simples. Deve-se, então, proceder a uma nova votação, na qual a maioria relativa será aceite (nº2).
Assim sendo, a nomeação do diretor-geral da ARCA não é válida, por não respeita nem a questão da ordem do dia, nem a questão da maioria absoluta.
Bibliografia:
OTERO, Paulo. Casos Práticos de Direito Administrativo I e II. AAFDL Editora, 2017.
OTERO, Paulo. Manual de Direito Administrativo, vol. I. Almedina, 2013.
Rita Santos 2ºB, subturma 15, nº 64694