Resolução do Grupo I do Caso Prático 1.2 - Livro de Casos Práticos do Professor Paulo Otero

18-12-2022

Carlos Vieira Guerra


  • I. Enquadramento

O presente artigo abordará a resolução do primeiro grupo do caso prático 1.2 do livro de Casos Práticos do Professor Paulo Otero [1].


  • II. Caso Prático

Nos termos da Lei n.º x/2008, a expulsão de estrangeiros com autorização de residência em Portugal compete ao Ministro da Administração Interna (MAI).

Em 02.02.2009, um decreto regulamentar, invocando os princípios da desconcentração administrativa e da subsidiariedade, veio determinar que a expulsão de estrangeiros com autorização de residência, desde que habitassem fora do município de Lisboa, seria da competência da Câmara Municipal do local da respetiva residência.

Em 03.03.2009, Abel, brasileiro com autorização de residência em Portugal, residindo em Lisboa, acabando de cumprir pena de prisão por furto, foi destinatário do seguinte ato da Câmara Municipal de Lisboa, aprovada por cinco votos a favor e três contra:

"Por se considerar que o decreto regulamentar de 02.02.2009 viola o princípio da igualdade entre autarquias locais, determina-se a imediata expulsão de Abel".

Inconformado com a decisão, Abel, alegando a inconstitucionalidade do ato de expulsão, interpôs recurso tutelar para o MAI, tendo este, em 04.04.2009, revogado o ato.

Entretanto, em 05.05.2009, a Câmara Municipal do Porto aprovou uma deliberação pela qual, considerando "gravemente inconstitucional a Lei n.º x/2008, por violar o artigo 33.º, n.º 2", recusa expulsar quaisquer estrangeiros legalmente residentes no seu município.

Na sequência desta deliberação, o MAI ordenou ao Município do Porto, em 06.06.2009, o imediato cumprimento da lei, sob pena de dissolução dos seus órgãos.

Em 07.07.2009, insatisfeita com a situação, a Câmara Municipal do Porto resolveu apresentar queixa ao Provedor de Justiça contra o MAI.

Em 12.11.2009, o Provedor de Justiça recomendou à Assembleia da República que, em vez do MAI, fosse o Ministro dos Negócios Estrangeiros o órgão competente para decidir a matéria prevista na Lei n.º x/2008.

A Assembleia da República recusa-se a dar execução à recomendação do Provedor de Justiça, entendendo existir aqui uma reserva constitucional do Governo.

Resolva, fundamentadamente, todas as questões suscitadas pela hipótese.


  • III. Resolução

O Ministro da Administração Interna teve uma competência fixada pela Lei n.º x/2008. No entanto, a lei parece levantar problemas de constitucionalidade, na medida em que viola o artigo 33.º/2 da Constituição, dado que o cidadão estrangeiro que entrou em território nacional e tem autorização de residência apenas pode ser expulso por autoridade judicial, pelas formas de decisão fixadas em lei, pelo que a lei é inconstitucional. Acresce mencionar que o poder judicial apenas pertence aos tribunais, nos termos do artigo 202.º da Constituição da República. Assim, o Ministro não tem a competência fixada pela Lei, cuja pertence, por força do artigo 33.º da Lei Fundamental aos Tribunais.

Um decreto regulamentar é um regulamento administrativo emitido pelo Governo, cujo possui normas jurídicas gerais e abstratas, cujas visam produzir efeitos jurídicos externos, nos termos do artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo conjugado com o artigo 138.º/3 do mesmo diploma. Acresce que, a norma de competência que confere poderes jurídico-administrativos para o Governo emitir regulamentos é o artigo 199.º, al. c) da Constituição da República. Como se retira do preceito constitucional, bem como do artigo 136.º/1 do Código do Procedimento Administrativo, o regulamento destina-se a executar uma lei, devendo, sempre, indicar de forma expressa a lei que visa regulamentar, nos termos do número 2 do mesmo artigo conjugado com o artigo 112.º/7 da Constituição. Nesta medida o decreto regulamentar é ilegal e possui uma inconstitucionalidade formal, dado que foi aprovado ao abrigo de princípios e não de normas habilitantes. Outra ilegalidade, bem como inconstitucionalidade, foi a falta de publicidade do ato, nos termos do artigo 139.º do Código do Procedimento Administrativo, em consonância com o artigo 119.º/1, al. h) da Constituição. De facto, a publicidade é um requisito de eficácia, dada a produção de efeitos jurídicos externos. No entanto, quando existem dois vícios em simultâneo, e levando em linha de raciocínio a tese jurisprudencial de consumpção dos vícios [2], o vício mais grave (inconstitucionalidade), consome o menos grave (ilegalidade). Nestes termos, o decreto regulamentar é inconstitucional, dado que viola a Constituição, não possuindo, assim, qualquer eficácia jurídica. O Código do Procedimento Administrativo, a este respeito, consagra que os regulamentos nesta circunstância são inválidos, nos termos do artigo 143.º/1. O decreto regulamentar estava, ainda, a atribuir uma nova competência às Câmaras Municipais, o que significa, na prática, que estava a alterar a lei, no entanto, não é possível, dado que a lei, enquanto ato legislativo, necessita de ser alterada por outro ato legislativo. Os atos legislativos estão tipificados no artigo 112.º/1 da Constituição. Nesta medida, existe uma inconstitucionalidade, pelo que a competência não é, em termos jurídicos da Câmara Municipal. Neste sentido, igualmente, o decreto era ineficaz, nos termos do artigo 143.º/1 do Código do Procedimento Administrativo.

A Câmara Municipal aprovou um ato administrativo, nos termos do artigo 148.º do Código do Procedimento Administrativo. No entanto, a Câmara para o aprovar necessita, enquanto órgão, nos termos do artigo 20.º/1 do Código do Procedimento Administrativo, de ver reunido o quórum, na medida em que necessita de estar efetivamente presente a maioria do número legal dos seus membros com direito de voto, nos termos do artigo 29.º/1 do Código do Procedimento Administrativo. A Câmara Municipal é formada pelo Presidente e pelos vereadores, nos termos do artigo 56.º/1 da Lei n.º 169/99. O Município de Lisboa tem 16 vereadores, nos termos da alínea a) do número 2 do artigo 57.º da Lei n.º 169.º/99. Assim, a Câmara Municipal é composta por 17 titulares, pelo que, para estar reunido o número legal mínimo eram necessários, pelos menos, 9 titulares. Assim, e tendo em conta que estavam reunidos apenas 8, o ato é nulo, por inobservância do quórum, nos termos do artigo 161.º/2, al. h) do Código do Procedimento Administrativo. Nos termos do número 1 do artigo 162.º do mesmo diploma, este não produz efeitos jurídicos. A Câmara, ao praticar o ato administrativo, necessitava de notificar Abel antes de emitir o ato, dado que este extinguia um direito, o de permanecer legalmente em território nacional, nos termos do artigo 33.º/2 da Constituição, em consonância com o artigo 114.º/1, al. c) do Código do Procedimento Administrativo, de cuja notificação têm que constar os elementos do número 2 do mesmo artigo. Além do mais, Abel tinha o direito de audiência prévia, nos termos do artigo 121.º/1 do Código do Procedimento Administrativo. Nestes termos, o ato era nulo, por não respeitar o procedimento, existindo, nestes termos, uma ilegalidade procedimental, em consonância com o artigo 161.º/2, al. l) do Código do Procedimento Administrativo, cujo não produz efeitos jurídicos, nos termos do artigo 162.º/1 do mesmo diploma. Além do exposto, parece relevante discutir o fundamento com que Abel foi expulso do território nacional. Com efeito, o princípio da igualdade tem aplicabilidade às autarquias locais? Ora, na Constituição não há qualquer referência a este, dado que o princípio da igualdade [3], do ponto de vista sistemático, se situa na parte dos direitos fundamentais dos cidadãos, pelo que não parece possível a sua aplicabilidade às autarquias locais. Além do mais, na parte da Constituição que diz respeito às autarquias locais, não está consagrado de forma expressa o princípio da igualdade, nem existe nenhum preceito do qual se possa retirar este. Assim, e consequentemente, as autarquias locais podem ter diferentes poderes. Acresce, ainda, mencionar que a Câmara não poderia determinar a expulsão de Abel, dado que apenas o podem fazer os Tribunais, nos termos do artigo 33.º/2 conjugado com o artigo 204.º/1 da Constituição. Assim, existe uma incompetência absoluta, dado que a Câmara violou o princípio da separação de poderes e usurpou um poder, que é dos Tribunais, nos termos do artigo 161.º/2, al. a) do Código do Procedimento Administrativo, pelo que o ato não produz efeitos jurídicos, nos termos do artigo 162.º/1 do mesmo diploma. Além desta ilegalidade, o ato é inconstitucional, dado que viola a separação de poderes, nos termos do artigo 111.º da Constituição.

O recurso interposto por Abel poderia, eventualmente, enquadrar-se-ia nos termos da alínea c) do número 1 do artigo 199.º do Código do Procedimento Administrativo, cujo apenas pode ter o fundamento do número 3 do mesmo artigo. No entanto, as autarquias locais não apresentam tutela de mérito perante o Governo, pelo que não é possível interpor, Abel, um recurso tutelar. Em alternativa, Abel poderia, interpor um recurso hierárquico, nos termos do artigo 193.º/1, al. a) do Código do Procedimento Administrativo, dirigido ao Presidente da Câmara, nos termos do 194.º/1 do mesmo diploma. Igualmente, poderia ser realizada uma reclamação administrativa, nos termos do artigo 191.º/1 do Código do Procedimento Administrativo. Assim, o MAI não poderia revogar o ato, dado que, pelo ato ser nulo, em termos acima expostos, é insuscetível de revogação, nos termos do artigo 165.º/1 conjugado com o artigo 166.º/1, al. a) do Código do Procedimento Administrativo. Assim, o ato praticado pelo MAI era nulo, por ser estranho às suas atribuições, nos termos do artigo 161.º/2, al. b) do Código do Procedimento Administrativo, conjugado com o número 1 do artigo 162.º do mesmo diploma, na medida em que não produz efeitos jurídicos.

A Câmara Municipal do Porto aprovou uma deliberação, enquanto órgão, nos termos do artigo 20.º/1 do Código do Procedimento Administrativo, para cuja era necessário estar reunido o quórum, nos termos do artigo 29.º/1 do mesmo diploma. A Câmara Municipal é formada pelo Presidente e pelos vereadores, nos termos do artigo 56.º/1 da Lei n.º 169/99. O Município do Porto tem 12 vereadores, nos termos da al. b) do número 2 do artigo 57.º da Lei n.º 169/99, pelo que a Câmara Municipal tem 13 vereadores. Assim, para a deliberação ser aprovada, necessitava de, pelo menos, 7 membros presentes. Embora o regulamento administrativo viole a Constituição e, por isso, seja inconstitucional. No entanto, e tendo em conta esta inconstitucionalidade, o município poderia recusar a aplicação do regulamento administrativo, dada a sua ineficácia, nos termos do artigo 143.º/1 do Código do Procedimento Administrativo e tendo em conta a explanação supramencionada.

O Ministro da Administração Interna não poderia ordenar aos municípios, dado que não possui poder de direção [4] sobre as autarquias locais, cujo se fundamenta, também, pela inexistência de hierarquia administrativa. Acresce, ainda, mencionar que o Ministro não poderia dissolver os órgãos do Município do Porto. A dissolução de órgãos autárquicos apenas pode ocorrer por alguns dos motivos constantes do artigo 9.º da Lei n.º 27/96. Não estando verificada nenhuma das causas, os órgãos não poderiam ser dissolvidos. Acresce mencionar que a decisão de dissolução é da competência dos tribunais administrativos de círculo, nos termos do número 1 do artigo 11.º da Lei n.º 27/96.

A Câmara Municipal, enquanto órgão, nos termos do artigo 20.º/1 do Código do Procedimento Administrativo apresentou uma queixa ao Provedor de Justiça, nos termos do artigo 23.º da Constituição da República. A atividade do Provedor é desencadeada pelas queixas que os cidadãos lhe dirijam, nos termos do número 1 do artigo 23.º da Constituição, no exercício de um particular direito de petição, nos termos do artigo 52.º/1 do mesmo diploma. A sua atuação abrange todos os «poderes públicos» e todos os tipos de atos públicos, não estando, portanto, limitada à Administração, podendo muito bem abarcar a atividade política e legislativa do Estado e os respetivos órgãos. A função do Provedor é fundamentalmente caracterizada pela sua natureza informal e não jurisdicional, cuja função é mais vasta do que a defesa da legalidade, tratando-se de «prevenir e reparar injustiças» praticadas, tal como é referido no número 1, in fine, do artigo 23.º da Constituição, quer por violação dos princípios constitucionais que vinculam a atividade discricionária da Administração. Nestes termos, não parece possível que a Câmara do Porto pudesse dirigir uma queixa ao Provedor de Justiça, dado que este dirime, apenas, conflitos entre a Administração e os cidadãos, e não entre pessoas coletivas, o que, no caso, poderia ser um conflito institucional. Nestes termos, a Câmara não tinha legitimidade para apresentar queixa, pelo que a mesma seria inconstitucional.

Os meios de ação são fundamentalmente as recomendações aos poderes públicos, nos termos do número 1 do artigo 23.º da Constituição, não podendo ele, dar-lhes ordens, nem se substituir a eles. Embora as recomendações não se traduzam em mandatos injuntivos dirigidos aos órgãos da Administração, o órgão destinatário deve comunicar ao Provedor, qual a posição que pretende adotar e, além disso, fundamentar o não acatamento da recomendação se for esse o caso. Nestes termos, não é lícito a indiferença perante as recomendações do Provedor. Consequentemente, o Provedor, na sequência da queixa da Câmara, deve emitir uma recomendação ao Ministro da Administração Interna, e não à Assembleia da República. Acresce, ainda, que o Ministro deve comunica ao Provedor a posição que pretende adotar, num prazo de 60 dias, nos termos do artigo 38.º/2 da Lei n.º 9/91. Dado que o Ministro não acatou a decisão seria necessário fundamentar o seu não acatamento, nos termos do artigo 38.º/3 da Lei n.º 9/91. Dado que a Administração não atuou de acordo com as suas recomendações, o Provedor de Justiça pode dirigir-se à Assembleia da República, nos termos do artigo 38.º/6 da Lei n.º 9/91.

A recomendação do Provedor é inconstitucional, dado que a Constituição estatui, expressamente, que devem ser as autoridades judiciais a tomar a decisão prevista, nos termos do artigo 33.º/2. A Assembleia da República, no caso de não acatamento da decisão tem o dever de fundamentação, nos termos do artigo 38.º/3 da Lei n.º 9/91. Nestes termos, o fundamento levantado pela Assembleia da República não é conforme à Constituição, dado que a Assembleia da República pode fazer leis sobre todas as matérias, exceto as da competência exclusiva do Governo, que lhe são reservadas pela Constituição, nos termos do artigo 161.º, al. c). Contudo, e dado que este assunto interfere com direitos, liberdades e garantias, a competência é da reserva relativa da Assembleia da República, nos termos da alínea b) do número 1 do artigo 165.º da Constituição, cuja só pode ser exercida pelo Governo, nos termos do número 2 do mesmo preceito. Nestes termos, o fundamento da Assembleia não é verdadeiro.


Referências:

[1] Vide, a este respeito, Paulo Otero, "CASOS PRÁTICOS DE DIREITO ADMINISTRATIVO I E II", AAFDL EDITORA, 2018, pp. 19 e 20.

[2] Vide, a este respeito, Carlos Blanco de Morais, "Curso de Direito Constitucional: lei e sistema normativo", ALMEDINA, 2022, p. 215; Gomes Canotilho, "Direito Constitucional", Coimbra, 2001, pp. 997 e ss.

[3] O princípio da igualdade está previsto no artigo 13.º da Lei Fundamental.

[4] Um poder de direção "consiste na faculdade de o superior dar ordens e instruções, em matéria de serviço, ao subalterno" - Diogo Freitas do Amaral, "Curso de Direito Administrativo", Vol. I, Almedina, 4.ª Edição, 2015, p. 674.

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