Responsabilidade civil extracontratual administrativa por atos de gestão pública

31-05-2023

1. A responsabilidade civil na Administração Pública

   A principal função do instituto da responsabilidade civil extracontratual é, em todos os planos normativos e campos de aplicação, o de compensar ou ressarcir quaisquer prejuízos na esfera jurídica de outrem. É através da obrigação de indemnizar que se visa colocar o lesado na exata situação em que se encontraria caso este prejuízo não houvesse sido sofrido. Segundo o Professor DIOGO FREITAS DO AMARAL, indemnizar significa, então, "eliminar a perda in natura, real, infligida em interesses juridicamente protegidos."[1]

 A lógica não será, portanto, diferente para a responsabilidade civil extracontratual administrativa. Do exercício de poderes jurídico-administrativos pelos órgãos da Administração Pública podem resultar prejuízos (seja pela prática de um ato ou omissão ilícita ou ilegal, suscetível de fazer sobre esta a obrigação de indemnizar os prejuízos causados; ou pela prática de atos que carregam uma componente de risco – responsabilidade extracontratual administrativa objetiva pelo risco). Daí que se exija, desde logo, um exercício de funções administrativas correspondente ao bloco de legalidade da ordem jurídica portuguesa (em todas as suas dimensões: supralegal, legal e infralegal).

   Aliás, é de extrema relevância a referência ao artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa, que dispõe:

  1. O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por ações ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.

   A disposição constitucional plasmada consagra a preferência que o legislador conferiu ao regime da solidariedade. Os Professores GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, bem como o Professor DIOGO FREITAS DO AMARAL, têm entendido que o sentido constitucional dado ao instituto da solidariedade está na possibilidade de responsabilização, tanto dos órgãos administrativos como dos agentes em exercício de funções jurídico-públicas. O agente só responde diante das hipóteses previstas na lei: a responsabilidade é, a priori, do Estado.[2]

   A complementar o artigo 22.º tem-se o artigo 271.º, também da Constituição da República Portuguesa, que discrimina a responsabilização dos funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas pela sua atuação. Estes são responsáveis civil, criminal e disciplinarmente pelas ações ou omissões que pratiquem no exercício das suas funções e, igualmente, por quaisquer violações que desse exercício resultem.


2. A responsabilidade civil extracontratual administrativa por atos de gestão pública

  Como referência inicial a este capítulo, temos o artigo 3.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, sobre a responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas (tem-se discutido o âmbito material de aplicação desta Lei: ela aplica-se apenas aos atos de gestão pública ou também aos atos de gestão privada? Parece aplicar-se apenas, nos termos do artigo 1.º, número 2 da Lei em questão, a ações ou omissões praticadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de Direito; o entendimento é o de que o legislador pretendeu uniformizar o regime de responsabilidade por atos de gestão pública, sem prejudicar os regimes especiais, continuando a sediar no Código Civil as normas aplicáveis aos casos de responsabilidade por atos de gestão privada[3]):

  1. Quem esteja obrigado a reparar um dano, segundo o disposto na presente lei, deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
  2. A indemnização é fixada em dinheiro quando a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa.
  3. A responsabilidade prevista na presente lei compreende os danos patrimoniais e não patrimoniais, bem como os danos já produzidos e os danos futuros, nos termos gerais de direito.

   Em seguimento, distinguem-se cinco modalidades de responsabilidade civil extracontratual administrativa por atos de gestão pública: responsabilidade por ação ou omissão ilícita e culposa (a.); responsabilidade no âmbito do procedimento de formação de contratos administrativos (b.); responsabilidade por funcionamento anormal do serviço (c.); responsabilidade pelo risco (d.) e responsabilidade por ato ilícito (e.).

· Responsabilidade por ação ou omissão ilícita e culposa: em aplicação analógica dos requisitos essenciais e cumulativos da figura da responsabilidade civil objetiva por facto ilícito do artigo 483.º do Código Civil, está assente na doutrina e jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo que são pressupostos essencialmente a preencher para que exista verdadeira obrigação de indemnizar por responsabilidade por ação ou omissão ilícita e culposa: a prática voluntária e culposa de um ato ou omissão ilícita ou ilegal; a existência de um dano ou prejuízo e a existência de um nexo causal entre a prática do ato ou omissão e o dano ou prejuízo causado.

  • Ato ou omissão voluntária: a prática de um ato voluntário pode corresponder a um facto positivo – uma ação – ou a um facto negativo – uma omissão. Para o Professor DIOGO FREITAS DO AMARAL, a voluntariedade desta prática "significa, apenas, que os mesmos (ato ou omissão) têm de ser objetivamente controláveis ou domináveis pela vontade."[4]

  • Ilicitude: para o Professor SINDE MONTEIRO, o sistema de responsabilidade civil extracontratual do Código Civil caracteriza-se por apresentar três diferentes cláusulas de ilicitude; assim, é ilícita a conduta do agente quando violar um direito de outrem, uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios e, em sentido lato, para abranger qualquer conduta material[5]. O sentido da qualificação como ilícito é-nos dada, de forma mais objetiva, pelo disposto no número 1 do artigo 9.º da Lei n.º 67/2007: "consideram-se ilícitas as ações ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objetivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos."

  • Culpa: o ato ou omissão ilícita voluntariamente praticada deve ter-se regido pelo princípio da culpa. No entendimento do Professor MENEZES LEITÃO, a culpa configura-se como "um desvalor atribuído pela ordem jurídica ao facto voluntário do agente, que é visto como axiologicamente reprovável."[6] Nos termos do artigo 10.º, número 1 da Lei n.º 67/2007, temos que "a culpa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes deve ser apreciada pela diligência e aptidão que seja razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e cumpridor." Para o Professor DIOGO FREITAS DO AMARAL, distinguem-se os factos funcionais dos factos pessoais: os primeiros dizem respeito aos factos praticados no exercício de funções do autor dos danos, para o qual se impõe uma relação de conexão entre o exercício das funções e a prática de ações ou omissões causadoras do dano; já os factos pessoais dizem respeito aos factos danosos praticados fora do exercício de funções administrativas, ou no exercício dessas funções mas não por causa dele.[7]

  • Dano: segundo os Professores MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO MATOS, o dano pode ser definido como "a diminuição ou extinção de uma vantagem que é objeto de tutela jurídica."[8] É sabido que não pode existir responsabilidade, nem obrigação de indemnizar, sem que haja sido sofrido um dano; ou seja, não é suficiente que um determinado agente administrativo tenha praticado um facto ilícito e culposo para que haja responsabilidade, mas é necessário que esse facto tenha gerado um prejuízo ou um dano na esfera jurídica de outrem.

  • Nexo de causalidade: por fim, é indispensável que exista uma relação causal entre a prática do ato ou omissão e o dano ou prejuízo causado. A teoria adotada com maior frequência pela doutrina e pela jurisprudência dos Tribunais Administrativos tem sido a teoria da causalidade adequada: esta pressupõe a imputação de uma determinada conduta ao resultado danoso quando fosse previsível que a mesma daria origem ao prejuízo; perante uma omissão, a conduta omissiva será causa do dano quando, em circunstâncias de razoabilidade e normalidade, fosse capaz de impedir a produção do dano. Assim, a averiguação da adequação abstrata do facto a produzir o dano só pode ser realizada através de um juízo de previsibilidade a posteriori do dano.[9]

· Responsabilidade no âmbito do procedimento de formação de contratos administrativos: a autonomização desta modalidade de responsabilidade surge prevista no artigo 7.º, número 2 da Lei n.º 67/2007, e que prevê que deve ser concedida uma indemnização aos lesados por conta da violação de qualquer norma ocorrida no âmbito do procedimento de formação dos contratos enunciados no artigo 100.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

· Responsabilidade por funcionamento anormal do serviço: a teoria do funcionamento anormal do serviço ou da falta do serviço encontra-se consagrada nos números 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 67/2007. Segundo o Professor DIOGO FREITAS DO AMARAL, para se considerar que uma entidade pública agiu com culpa, é necessário imputar essa culpa "a um ou mais indivíduos que tenham atuado, no exercício das suas funções, ao serviço dessa pessoa coletiva (como titulares dos seus órgãos ou como seus funcionários ou agentes)."[10] Esta modalidade de responsabilidade civil extracontratual por atos de gestão pública teve origem, portanto, na dificuldade, em determinadas situações, de identificar o âmbito subjetivo da culpa; isto é, na dificuldade de se apurar a imputação da culpa. Deste modo, o legislador consagra a possibilidade de imputação da responsabilidade ao Estado e demais entidades públicas, mesmo quando não seja possível ou razoável individualizar o agente administrativo faltoso, bastando-se, neste caso, evidenciar que o serviço público funcionou anormalmente. A teoria do funcionamento anormal do serviço comporta duas modalidades possíveis:

  • Falta coletiva: diz respeito às situações em que o dano ou o prejuízo não resulta de um comportamento concreto de determinado agente (independentemente deste ser identificável ou não) mas é, antes, atribuível a uma atuação global do serviço;

  • Falta anónima: reporta-se às situações em que apesar de o dano ser imputável à ação de um determinado agente administrativo, não é possível provar a autoria pessoal da ação ou omissão ilícita.

· Responsabilidade pelo risco: em relação à responsabilidade civil fundada no risco, declara o artigo 11.º, número 1 da Lei n.º 67/2007 o seguinte: "O Estado e as demais pessoas coletivas de direito público respondem pelos danos decorrentes de atividades, coisas ou serviços administrativos especialmente perigosos, salvo quando, nos termos gerais, se prove que houve força maior ou concorrência de culpa do lesado, podendo o tribunal, neste último caso, tendo em conta todas as circunstâncias, reduzir ou excluir a indemnização." Esta modalidade traduz-se na premissa de que aquele ou aqueles que criam ou mantêm um risco em proveito próprio, devem suportar as consequências prejudiciais do seu emprego (ubi emolumentum, ibi onus; ubi commodum ibi incommodum).

· Responsabilidade por ato ilícito: última das cinco modalidades, dispõe o artigo 16.º da Lei n.º 67/2007 (note-se a designação ampla utilizada pelo legislador – indemnização pelo sacrifício): "O Estado e as demais pessoas coletivas de direito público indemnizam os particulares a quem, por razões de interesse público, imponham encargos ou causem danos especiais e anormais, devendo, para o cálculo da indemnização, atender-se, designadamente, ao grau de afetação do conteúdo substancial do direito ou interesse violado ou sacrificado." Assim, a obrigação de indemnizar pode resultar de uma violação ou de um sacrifício de um direito fundamental ou de um interesse legalmente protegido; para o Professor DIOGO FREITAS DO AMARAL, a distinção entre violação e sacrifício consiste no facto de apenas no primeiro caso existir "responsabilidade civil fundada na justificação de um ato, positivo ou negativo, ilícito – isto é, há um ato danoso que seria à partida ilícito, mas que, por haver uma causa de justificação, se torna lícito (…); no segundo caso, o que está em causa é um mero problema de compensação de um sacrifício."[11] A Professora CARLA AMADO GOMESentende que o artigo 16.º comporta a especificidade de que o dano não pode ser removido sem o sacrifício dos interesses do particular, sendo que a indenização pelo sacrifício abrange tanto os atos em estado de necessidade como os atos administrativos lícitos[12] para o Professor MENEZES CORDEIRO, a excecionalidade da permissão de um dano encontra-se tipificada no artigo 483.º, número 2 do Código Civil, que vem consagrar, de forma ampla, a imputação pelo sacrifício especificada em três blocos distintos: o estado de necessidade, a lesão ao direito de propriedade e o incumprimento de contratos[13].


3. Bibliografia/webgrafia

[1] Vide FREITAS DO AMARAL, Diogo em Curso de Direito Administrativo, volume II, 4.ª edição, página 566

[2] Vide GOMES CANOTILHO, José e MOREIRA, Vital em Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4.ª edição, página 425 e FREITAS DO AMARAL, Diogo em Curso de Direito Administrativo, volume II, 4.ª edição, página 587

[3] Vide GOMES, Carla Amado e RAIMUNDO, José Assis em Topicamente – e a quatro mãos… – sobre o novo regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, 2010 e o Acórdão n.º 017/13 do Supremo Tribunal Administrativo, de 30 de maio de 2013

[4] Vide FREITAS DO AMARAL, Diogo em Curso de Direito Administrativo, volume II, 4.ª edição, página 602

[5] Vide SINDE MONTEIRO, Jorge em Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos de reforma de 1977 – Responsabilidade delitual: da ilicitude, página 464

[6] Vide MENEZES LEITÃO, Luís Manuel em Direito das Obrigações, volume I, 13.ª edição, página 280

[7] Vide FREITAS DO AMARAL, Diogo em Curso de Direito Administrativo, volume II, 4.ª edição, página 606

[8] Vide REBELO DE SOUSA, Marcelo e SALGADO MATOS, André em Direito Administrativo Geral, tomo III, 1.ª edição, página 26

[9] Vide MENEZES LEITÃO, Luís Manuel em Direito das Obrigações, volume I, 13.ª edição, página 312

[10 e 11] Vide FREITAS DO AMARAL, Diogo em Curso de Direito Administrativo, volume II, 4.ª edição, páginas 615-616 e 620

[12] Vide GOMES, Carla Amado e RAIMUNDO, José Assis em Topicamente – e a quatro mãos… – sobre o novo regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, 2010

[13] Vide MENEZES CORDEIRO, António em A responsabilidade civil do Estado, 2010, páginas 623 a 658


Por: Rita Matos Pardal

Subturma 15, turma B

Crie o seu site grátis! Este site foi criado com a Webnode. Crie o seu gratuitamente agora! Comece agora